LEITURA DESABESTALHADORA


Vez por outra, meus interiores se rejubilam com escritos cristãos que rompem as barreiras da mediocridade, da rotina e do meramente convencional, apresentando balizamentos que realimentam as esperanças de um futuro quilômetros distanciados das atuais parvoíces dos religiosos de todas as denominações, que nos imaginam ovelhas abestadas de um rebanho integralmente alienado.

Como cristão transecumênico convicto, costumo dizer que Cristianismo e Cristandade não são nada parecidos. “O Cristianismo tem o batismo da pureza e verdade de Jesus, enquanto a Cristandade é o conjunto de instituições que nascem do Cristianismo, mas carregam todas as deformações geradas pelos equívocos humanos, até o momento que se podem tornar forças espúrias e prejudiciais”. Conheço inúmeros religiosos – padres, pastores e outras coisas -, que não possuem um pingo sequer de autocrítica, não percebem que as suas instituições estão resvalando para um conservadorismo medieval fétido, apenas favorecendo uma idiotização coletiva, distanciando as inteligências jovens críticas e inventivas, evolucionais por excelência, que não excluem as divergências, discutindo-as para ampliar horizontes, consolidando novos procedimentos evangelizadores, enaltecendo a liberdade de pensamento e de ação. E disseminando que a palavra “herege” significa “aquele que escolhe”. Propiciando uma aproximação maior dos seres humanos com a Criação.

Outro dia, “um ensaio verdadeiramente notável”, no proclamar de Antônio Carlos Villaça, me proporcionou extrair da lixeira mental um bocado de bobajadas que ainda se amontoavam em meu interior de irmão convicto do Homão da Galileia ainda muito amado num planeta onde a secularização é um fato e onde salvação nada tem a ver com igreja, como proclamava Ivan Illich, hoje eternizado, cofundador do conhecido e controvertido Centro Intercultural de Documentação – CIDOC, Cuernavaca, México: “os alunos de escolas e seminários são escolarizados a confundir ensino com aprendizagem, obtenção de graus com educação, diploma com competência, fluência no falar com capacidade de dizer algo novo”.

O ensaio aplaudido entusiasticamente pelo Villaça tem o título Deus Fora do Espelho, RJ, Mauad X, 2007, cuja primeira versão foi publicada em 1978, pelo pastor Jonas Rezende, da Igreja Presbiteriana, que foi dela excluído, “sob a severa acusação de grave e ofensiva heresia, como se estivéssemos mergulhados na face obscura da Idade Média e não na ensolarada cidade do Rio de Janeiro, justo no limiar do terceiro milênio”.

As reflexões do Rezende, contidas num pequeno notável livro de 170 páginas, revelam uma lição para todos aqueles que desejam possuir a “coragem de ser” proclamada pelo teólogo Paul Tillich, para quem Deus é “a base da nossa existência” e onde “escolher é a expressão densa e visível da liberdade humana”. E Rezende faz questão de ressaltar nas Preliminares: “Quero informar a quem me leu ou irá ler-me agora que, nos últimos trinta anos, nem um só dia passou sem que eu não me reconhecesse e fosse reconhecido como o pastor que sou. Um pastor pela graça de Deus e a generosidade de meus companheiros”.

O atual papa Francisco na sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium – A Alegria do Evangelho – propõe diretrizes para uma nova etapa da sua igreja, linhas de ação que poderiam ser estendidas para todo o mundo cristão, sem qualquer supremacia de umas denominações sobre as demais. Ei-las: a reforma em saída missionária, as tentações dos agentes pastorais, a Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que evangeliza, a homilia e a sua preparação, a inclusão social do pobre e as motivações espirituais para o compromisso missionário.

É o próprio papa Francisco quem reconhece: “Não ignoro que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que em outras épocas e acabam rapidamente esquecidos”. Atrevo-me a sugerir aos lerdos e desiludidos, um verbo utilizado pelo pontífice: primeirear. Que quer dizer envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar pela vez primeira. Segundo o papa argentino: “tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos”.

Creio firmemente que muitos estão contaminados por uma decidofobia, um medo de assumir as necessárias iniciativas. E terminam por pregar, a expressão é do Jonas Rezende e eu assino embaixo, uma verdadeira “Teologia da bobice ou, o que é pior, da fraude”. E ele bate forte nos que apenas se preocupam em amealhar assuntos sociais, contas bancárias e selfies, reproduzindo Bernard Shaw: “A indiferença é pior do que o ódio, porque a essência da desumanidade”.

No seu ensaio, Jonas Rezende reproduz Mário Vargas Llosa, autor de Conversa na Catedral: “Porque no bordel você estará mais perto da realidade do que no convento”. E para os que ficam revirando os olhinhos e esperneando histericamente como Bernardinho da seleção de vôlei, Rezende apenas repete Jesus, bem mais contundente, quando se dirigia aos escribas e fariseus: “As prostitutas chegarão ao meu Reino antes de vocês, hipócritas”.

Cutuquemos mais as denominações cristãs e os seus acomodados responsáveis, bispos e arcebispos, que ainda se encontram em tempos naufragados, refrescando a memória deles com a mantra de Santo Agostinho: “Ame e faça o que quiser”. E que cada um de nós “saibamos correr o risco de buscar o entendimento de Deus fora do espelho, isto é, longe de qualquer sugestão antropomórfica”.

Devemos ao Cristianismo ter hoje um mundo menos desumano, sádico e violento do que nos tempos passados. Mas não devemos jamais relegar o fortalecimento da Mensagem do Homão da Galileia, nunca mesclando amor e admiração com subserviências cretinas e cavilosas, próprias dos oportunistas que usam a Cruz para missões inquisitoriais, mancomunadas com poderes que estrangulam a criticidade e a liberdade de refletir, favorecendo batismos forçados e trocentas outras posturas espúrias. Tal e qual uma muito conhecida foto de sorridentes João Paulo II e Pinochet saudando a multidão na sacada do La Moneda, embora não tendo o papa sequer visitado a sede da Vicaria de la Solidariedade, estrutura diocesana que assistia as vítimas da monstruosa ditadura chilena de então.

(Publicado em 11.05.2015, no site do Jornal da Besta Fubana – www.luizberto.com)
Fernando Antônio Gonçalves