JUDAS, TRAIDOR OU HERÓI?
Continuam altos os rebuliços analíticos e as comoções hermenêuticas após a divulgação, em 2005, do Evangelho de Judas, classificado como apócrifo, atribuído a autores gnósticos do século II. Composto de 26 páginas de papiro escrito em copta, ele revela as relações de Judas com Jesus Cristo sob uma outra perspectiva, a de que Judas não teria traído Jesus, apenas atendido a um pedido do Nazareno para denunciá-lo às autoridades romanas, tornando-o livre de um atentado articulado.
Desaparecido por quase 1700 anos, uma cópia conhecida do documento foi publicada em abril de 2006 pela revista National Geographic. Autentificado como datado do século III ou IV (220 a 340 D.C.), é uma cópia de uma versão mais antiga redigida em grego. Contrariamente à versão dos quatro Evangelhos oficiais, este texto explicita que Judas era o discípulo mais fiel a Jesus e aquele que mais compreendia os seus ensinamentos.
O trecho-chave é atribuído a Jesus, dizendo a Judas: “Tu vais ultrapassar todos. Tu sacrificarás o homem que me revestiu”. Segundo o pensamento gnóstico, esta frase significaria que Judas, com a delação, estaria contribuindo para que Jesus Cristo pudesse libertar o seu espírito, livrando-se de seu invólucro carnal. Esclarece Terry Garcia, um dos responsáveis da revista: “Essa descoberta espetacular de um texto antigo, não-bíblico, considerada por alguns especialistas como um dos mais importantes jamais descobertos nos últimos 60 anos, estende nosso conhecimento da história e das diferentes opiniões teológicas do início da era cristã”.
A existência do Evangelho de Judas havia sido atestada pelo bispo de Lyon, São Irineu, que o denunciou em um texto contra as heresias, no século II. O bispo teria explicado no documento que, nos tempos dos apóstolos aconteceram diversas tentativas de se espalhar o erro e perturbar a união dos cristãos, e que alguns faziam-se passar por convertidos, exclusivamente para disseminar doutrinas contrárias a da Fé Apostólica. Irineu também comentou a existência de uma seita gnóstica chamada de Cainitas, cuja crença era baseada no princípio de um mundo material imperfeito, tendo sido criado não por um Deus Supremo e sim por uma inteligência criadora inferior a este.
Elaine Pagels, professora de Religião na Universidade de Princeton e uma das grandes especialistas mundiais sobre Evangelhos gnósticos, considera que “a descoberta surpreendente do Evangelho de Judas, bem como daqueles de Maria Madalena e de diversos outros documentos dissimulados durante quase 2000 anos, modifica nossa compreensão dos primórdios do cristianismo. Essas descobertas erradicam o mito de uma religião monolítica e mostram o quanto o movimento cristão era realmente diversificado e fascinante no seu início”.
Acredita-se que o manuscrito, encadernado em couro, tenha sido copiado por volta do ano 300 d.C. Ele foi descoberto, na década de 1970, no deserto egípcio de El Minya. Circulou entre vendedores de antigüidades, até chegar à Europa e, depois, aos Estados Unidos, onde permaneceu no cofre de um banco de Long Island por 16 anos, até ser novamente comprado no ano 2000, pelo antiquário suíço Frieda Nussberger-Tchacos. Preocupado com sua possível deterioração, o antiquário entregou o manuscrito à fundação suíça Maecenas Foundation for Ancient Art em fevereiro de 2001, a fim de preservá-lo e traduzi-lo.
(Publicado no Jornal do Commercio, Recife, Pernambuco, 21.08.2011)
Fernando Antônio Gonçalves