JORNAL CONTRA HITLER
Diante das cacarecagens estridentes e estupidificantes de um homofóbico histérico metido a deputado federal, um livro de uma brasileira, hoje tradutora e docente do Laboratório de Línguas da Universidade de Heidelberg, me entusiasmou nas últimas semanas. Lido de fio a pavio, A Cozinha Venenosa, editora Três Estrelas, da jornalista paulista Silvia Bittencourt, relata a trajetória de um pequeno jornal de Munique na oposição sem tréguas a Adolfo Hitler e seus assassinos. Residindo desde 1991 na Alemanha, a autora atualmente é também colaboradora da imprensa paulista.
Durante mais de uma década, o jornal Münchener Post combateu as ideias nazistas, inclusive o projeto que pregava a monstruosa “solução final” para judeus, homossexuais, deficientes, ciganos, comunistas e inválidos.
A partir de minuciosa pesquisa, a jornalista Bittencourt escreveu o primeiro livro inteiramente voltado para uma história ainda pouco conhecida: uma das mais importantes resistências ao nazismo pela imprensa, o jornal Münchener Post, antes da Segunda Guerra Mundial, embora sofrendo depredações da sua redação, a última delas acontecida em 1933, quando Hitler assumiu o poder. Segundo Ron Rosenbaum, autor de Para entender Hitler – a busca das origens do mal, Record, “a batalha travada entre Hitler e os corajosos repórteres do Post é um dos grandes dramas nunca relatados da história do jornalismo”.
Apesar dos especialistas voltados para a análise da ascensão do nazismo pouco se deterem sobre as lutas travadas pelo Münchener Post, talvez provocado pelo seu lado sensacionalista, sua resistência não deve resvalar para o baú dos esquecimentos. Daí a importância de A Cozinha Venenosa, “o primeiro livro a recuperar e contar em detalhes a história do combatente vespertino Münchener Post. Da primavera de 1920, quando começou a denunciar Hitler, a 9 de março de 1933, dia em que a redação foi destruída, denunciando por mais de dez anos os métodos e metas do líder nazista”
“Cozinhar”, no jargão da imprensa, é reescrever um texto já publicado. E Hitler proclamava sempre que o Post preparava seus textos com “veneno, inverdades e difamações”. Olvidando solenemente o que proclamaria, um dia, Eduardo Galeano, autor de As Veias Abertas da América Latina: “A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais do que eu. E ela não perde o que merece ser salvo”.
O famigerado Adolf Hitler ascendeu ao poder legitimamente pelo voto e subserviência do povo alemão, quando o partido nazista, depois da crise de 1929, tinha ampliado seu percentual de votos, de 3% (1928) para 33% (1932), com o apoio da grande-parte da burguesia alemã, à época apavorada pelas terríveis atrocidades cometidas por Joseph Stálin, ditador soviético.
Na opinião de Otávio Frias Filho, autor das “orelhas” do livro, “antissemitismo e desespero econômico se amalgamaram no respaldo das multidões ao líder demente. Antigos ressentimentos lançaram os militares na aventura fadada ao fracasso. O que não se consumou pela incrível subserviência do povo alemão foi arrancado pela brutalidade inaudita dos métodos nazistas. Mas houve quem dissesse não. … Atentados, intimidação judicial, depredação das instalações, nada deteve a coragem temerária do Post até sua eliminação física pelas hordas hitleristas, uma das primeiras medidas do ditador.”
Um capítulo merece uma releitura atenta e anotada. Trata-se de O Terceiro Reich, segundo o Post, jornal que tinha, como um dos principais objetivos editoriais denunciar os planos dos nazistas, a partir da conquista do poder. O jornal baseava suas análises no programa do NSDAP, sindicato instituído por Hitler, e também em documentos secretos a que tinha acesso. Ainda em 1931, o Post divulgou os chamados “Documentos de Boxheim”, contendo planos conspiratórios dos nazistas, inclusive a revogação da Constituição e a instauração de uma ditadura militar pela SA. Na noite de 4 de dezembro, uma sexta-feira, Martin Gruber, o editor mais importante do jornal foi barbaramente agredido por dois homens, que usavam socos-ingleses e gritavam incessantemente “Heil Hitler”. E o editorial do dia seguinte não contemporizou: “Os ataques dos homens da suástica foram, até agora, tanto covardes como brutais. Para satisfazer sua sede de sangue e se vingar do odiado Münchester Post, os meninos da suástica elegeram para esse assalto, praticamente pelas costas, o redator mais velho do jornal. E fugiram da mesma forma covarde com que atacaram”.
Um outro capítulo, que merece uma releitura refletida, intitula-se A Reconstrução da Imprensa Livre, quando o jornalista Edmund Goldschagg, no final de julho de 1945, foi convidado para dirigir o primeiro jornal livre da Baviera, com a finalidade de reeducar o povo alemão para a democracia e a liberdade, posto que, desde 1933, a Alemanha sofria do chamado Gleichschaltung (“padronização” ou “alinhamento”), quando entre quinhentas e seiscentas publicações tinham sido fechadas pelas hordas nazistas.
O edifício do Post ainda se encontra com suas estruturas de pé. Lá, uma placa lembra a destruição da redação do Post, em 1933. Como que relembrando que as suas advertências não foram levadas a sério. E que deu no que deu, infelicitando pela morte mais de 55 milhões de pessoas.
(Publicado em 06.01.2015, no site do Jornal da Besta Fubana – www.luizberto.com
Fernando Antônio Gonçalves