INCAPACITAÇÕES DESTRUTIVAS
Se alguém desejar ler um romance de suspense não ficcional que retrata de forma meticulosa a ascensão vertiginosa de Adolf Hitler ao poder, o maior assassino da história da Humanidade, uma notável reconstituição histórica se encontra explicitada no livro No Jardim das Feras: intriga e sedução na Alemanha de Hitler, Erik Larson, Rio de Janeiro, Intrínseca, 2012, 448 p.
E o relato tem início em 1933, quando o professor William E. Dodd, da Universidade de Chicago, sem qualquer experiência no complexo mundo da diplomacia, recebe um inesperado convite do então presidente Franklin Delano Roosevelt para assumir a Embaixada dos Estados Unidos na Alemanha, uma aparentemente privilegiada função agora não mais desejada pelas perspectivas negras que se anunciavam através de comentários advindos de turistas e analistas argutos.
Devidamente orientado para manter uma posição de neutralidade em relação ao novo governo, que já se iniciara pondo as garras de fora, implementando o estabelecido no livro Mein Kumpf (Minha Luta), escrito na prisão pelo novo mandatário máximo, Dodd se instala em Berlim, juntamente com a esposa Mattie e seus dois filhos adultos William Jr. e Martha, esta uma mulher desvinculada das discrições diplomáticas mínimas então vigentes, logo tornada deslumbrada pela pomposidade social, a animação dos eventos diplomáticos e o charme sedutor dos homens mais significativos do III Reich, principalmente o do chefe da Gestapo Rudolf Diels, famoso pelas sua incontáveis bimbadas em lugares pouco discretos, nunca dantes para tal fim destinados.
Durante os seus primeiros meses na Alemanha, a família Dodd logo percebeu, com estupefação, a crescente perseguição aos judeus, a instalação da censura na imprensa e a implantação de novas e terrificantes leis. Preocupações transmitidas pelo Embaixador Dodd ao Departamento de Estado, recebidas com cretiníssima indiferença pelos dirigentes máximos da diplomacia norte-americana, mais preocupados em receber uma dívida de US$ 1,2 bilhão, contraída com magnatas americanos.
Mas tudo mesmo começou umas semanas antes da chegada de Dodd, numa quinta-feira 29 de junho de 1933, quando dois funcionários consulares receberam a visita de Joseph Schachno, 31 anos, médico recém chegado de Nova York e devidamente instalado num dos subúrbios berlinenses. Que tinha sido violentamente chicoteado, dias antes, por dois homens fardados da gangue nazista, sob acusação falsa de conspiração contra o Estado. Devidamente hospitalizado e com um novo passaporte, logo fugiu com a esposa para a Suécia, seguindo posteriormente para os Estados Unidos.
O perfil do novo embaixador dos Estados Unidos na Alemanha, de birô, burocracia e sala de aula, beirava a simplicidade idiótica de quem se encontrava distanciado dos sinais animalescos que emergiam nos cenários germânicos, já identificados através de um comunicado anteriormente enviado ao então muito lerdo Departamento de Estado: “Com raras exceções, os homens que comandam este governo têm uma mentalidade que vocês e eu não conseguimos compreender. Alguns são verdadeiros psicopatas e em qualquer outro lugar estariam em tratamento”. As prisões, os espancamentos e os assassinatos já aconteciam aos montes, praticados pelas Tropas de Assalto, as famigeradas SA, que praticavam barbaridades sob o eufemismo burlesco de “praticar custódia protetora”, vitimando comunistas, socialistas, ciganos, deficientes e judeus.
O livro do Larson, uma leitura que embrenha por madrugadas várias, pode ser definido como um romance de suspense repleto de personagens altamente ambivalentes, alguns idióticos, outros animalizados, a grande maioria hipnotizada por alucinados nazistas, submetida a uma liderança máxima de inteligência privilegiada, embora voltada para ideários funestos, ainda hoje reacendidos, aqui e ali, por psicopatas que se imaginam seguidores perpétuos de posturas arianas antissemitas.
Em setembro de 1936, o nomeado embaixador norte-americano em Paris, William C. Bullitt, assim opinava sobre as atividades de Dodd: “ele tem muitas qualidades admiráveis e simpáticas, mas está quase idealmente despreparado para seu cargo atual”. O conceito negativo de Dodd se alastrava rapidamente, proporcionando ao famoso colunista Drew Pearson a publicação de reflexões contundentes numa coluna da United Features Syndicate, em dezembro de 1936, sobre a missão diplomática do embaixador, classificando sua atuação como “um fracasso total”, retratando a incapacidade dele de ajustar-se às emergentes manifestações do regime nazista.
O livro alerta, numa didática que não infelicita a dinâmica romanceada dos acontecimentos históricos, sobre os infortúnios que podem ser cometidos por personalidades despreparadas para o exercício de cargos que requerem decisões eivadas de consistentes estratégias políticas. Incluindo, aqui, as praticadas pelos familiares mais próximos. Um exemplo significativo pode ser colhido através de um telegrama secreto de Moscou para Nova York, em janeiro de 1942, classificando Martha, a filha de Dodd, de “mulher talentosa, esperta e instruída”, alertando que a mesma “requer controle constante de seu comportamento”. Um dos agentes soviéticos testemunhou contundentemente: “Ela se considera comunista e diz aceitar o programa do partido. Na realidade, é uma representante típica da boemia americana, uma mulher sexualmente corrompida e pronta para dormir com qualquer homem bonito”.
O talento de escritor, associado ao de historiador-pesquisador tornaram o livro de Erik Larson de leitura pra lá de sedutora, favorecendo o conhecimento de fatos que humilharam a dignidade mundial, ao mesmo tempo que advertindo para as terríveis consequências advindas quando se nomeia ou elege personalidades dotadas de inteligências limitadas ou pouco dotadas para as atividades de comando, que requerem competência, criatividade e compromisso solidário com os destinos de todos os seres humanos, sem as discriminações que enegrecem o caminhar de cada um.
(Publicada em 21.11.2016, no site do Jornal A Besta Fubana e no www.fernandogoncalves.pro.br)
Fernando Antônio Gonçalves