IMPUNIDADES GRITANTES


Uma questão paira no ar de uns tempos para cá, desafiando historiadores dos mais variados calibres: como alguns célebres culpados do massacre industrializado nazista de milhões de judeus e outras minorias, na Segunda Guerra Mundial, conseguiram encontrar lugar de destaque na sociedade dita civilizada ocidental, a mesma sociedade que eles tentaram criminosamente destruir? Impunidades que vitimaram duplamente as vítimas do Holocausto: pelos sofrimentos causados nas mãos dos nazistas e quando contemplaram, impotentes, os algozes escaparem da Justiça depois da guerra, passando ao convívio pleno de uma vida normal, após as atrocidades cometidas nos guetos e campos de morte.

Um livro de um jovem historiador, PhD em História pela Universidade de São Paulo, também pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação daquela universidade, especializado em nazismo e antissemitismo, refaz a caminhada pós-guerra de seis notórios carrascos nazistas: Klaus Barbie, Josef Mengele, Albert Speer, Franz Stangl, Gustav Wagner e Adolf Eichmann, autores de indescritíveis atrocidades, excessão do arquiteto Speer, considerado uma testemunha privilegiada daqueles tenebrosos tempos, visto hoje como um narrador daquilo que por ele foi observado, como se tivesse nenhuma responsabilidade, mesmo sendo o principal ministro do ditador nazista como Ministro do Armamento, considerado após a guerra e sua libertação da prisão de Spandau como memorialista, por ter escrito dois livros – Por Dentro do III Reich, Os Anos de Glória e Por Dentro do III Reich, A Derrocada, RJ, Artenova, 1971 -, criando uma imagem de alguém que não teve escolha e que possuía bom coração.

O livro recentemente lançado intitula-se Nazistas entre nós: a trajetória dos oficiais de Hitler depois da guerra, Marcos Guterman, SP, Contexto, 2016, 192 p., onde uma explicação se explicita: “A principal explicação para tamanho desvirtuamento da justiça está na época em que esses fatos se deram. Viviam-se os paranoicos tempos da Guerra Fria, em que, principalmente nos Estados Unidos, a luta contra os comunistas adquiriu contornos épicos, solapando qualquer outra consideração. Os americanos entenderam que os ex-oficiais nazistas poderiam ser úteis para esse combate considerado sobrevivencial, já que, durante a Segunda Guerra, tais criminosos haviam sido especialmente ferozes contra os soviéticos.”

Segundo o autor, fazendo justiça a uma posição brasileira, “no que diz respeito especificamente aos nazistas em fuga da Europa em direção à América Latina, nazistas esses que os americanos estavam interessados em proteger e cujo trabalho queriam explorar, o Brasil, até onde se sabe, nunca demonstrou interesse, muito menos empenho em recebê-los. Pode-se dizer que o Brasil dos militares era indiferente aos nazistas, embora soubesse que muitos deles – não necessariamente criminosos – haviam emigrado para o país depois da guerra, concentrando-se sobretudo na região Sul, de grande presença alemã.”

No livro está ressaltado que “o genocídio dos judeus e o massacre de outras minorias não teria sido possível sem a colaboração direta da sociedade europeia e, principalmente, alemã, seja na forma de colaboração direta, seja por omissão. Responsabilizar apenas Hitler e seus sequazes mais conhecidos foi a forma que o mundo encontrou para superar sua própria responsabilidade naquela imensa tragédia.” Inclusive, depois da Guerra, quando diversos empreendimentos foram organizados para tirar nazistas da Europa, alocando-os em lugares seguros, onde escapariam da justiça. Inclusive uma delas, chamada Ratline, “Linha dos Ratos”, também conhecida como “Rota dos Monastérios”, um dos principais protagonistas sendo o padre Krunoslav Draganovic, um fascista croata com grande trânsito nos serviços de inteligência americano, que contava com um importante operador, o bispo Alois “Luigi” Hudal, reitor de um seminário austro-germânico em Roma, que pessoalmente organizou a fuga do carrasco Franz Stangl, ex-comandante de Treblinka, para a Síria, também de Adolf Eichmann e Josef Mengele. Somente em uma carta datada de agosto de 1948, o bispo Hudal pede ao ditador argentino Juan Domingo Perón CINCO MIL vistos de entrada para três mil alemães e dois mil austríacos, dizendo terem sido soldados que combateram os comunistas. E com o bispo Hudal, trabalhava o padre húngaro Edoardo Dömöter, responsável pelo passaporte concedido a Eichmann, na sua fuga para a Argentina.

O livro, em capítulos especiais, traz detalhes sobre os criminosos nazistas acima citados. Abaixo, uma síntese de dois fascínoras.

Klaus Barbie, alcunhado “O Açougueiro de Lyon”, nascido em 1913, simbolizou um tipo muito particular de nazista: aquele que cumpria suas tarefas com prazer indescritivelmente sádico. Era um psicopata organicamente cruel. Sua crueldade ficou conhecida por ter ele desenvolvido terríveis técnicas de tortura e sevícias. Somente após 40 anos de cometer seus crimes foi a julgamento, acontecido em 1987, quando em 4 de julho saiu sua condenação à prisão perpétua, morrendo na prisão quatro anos depois sem demonstrar o menor sinal de arrependimento.

Josef Mengele, somente superado por Hitler no bestiário nazista. Conhecido como “Anjo da Morte”. Em Auschwitz, escolhia pessoalmente aqueles que seriam submetidos às mais terríveis experiências, as crianças gêmeas sendo as preferidas pelo médico monstro.

Depois de uma temporada na Argentina e no Paraguai, resolveu abrigar-se no Brasil, para isso contando com a proteção de Wolfgang Gerhard, ex-líder da Juventude Hitlerista na Áustria, que se encontrava no Brasil desde 1948, detestava os brasileiros por considerá-los de raça inferior, tendo conhecido Mengele no Paraguai, através do coronel nazista Hans-Ulrich Rudel. Para Mengele, Gerhard adquiriu para ele um pequeno sítio em Itapecerica da Serra, distante apenas 30 km da capital paulista.

Em janeiro de 1979, Mengele aceitou passar férias em Bertioga, na casa alugada por um casal amigo, se permitindo sair com ele de casa para um banho de mar, em 7 de fevereiro, quando às 16 horas, dentro d´água, sentiu o corpo paralisado por um derrame cerebral, em dez minutos morrendo sem qualquer socorro.

Enterrado sob identidade falsa, Mengele foi reconhecido em maio de 1985, quando a Polícia Federal brasileira encontrou na casa de Hans Seldmeier, um velho amigo, a correspondência que o Anjo da Morte guardava, posteriormente alguns arquivos sendo recolhidos também na casa do casal Bossert, identificando sua ossada no cemitério do Embu.

As trajetórias dos demais criminosos, eu as deixo para os amigos leitores interessados em Segunda Guerra Mundial. Vale a pena uma conferida.
(Publicada em 07.11.2016, no site do Jornal A Besta Fubana e no www.fernandogoncalves.pro.br)
Fernando Antônio Gonçalves