HUMOR, COISA SÉRIA
Se há gente que não suporto é aquela que não carrega um mínimo de humor sobre os ombros, imaginando ser a alegria coisa de abestado ou de gente pouco científica, incapaz de extrapolar pelo riso o deboche dos seus erros e os dos outros. Em algumas etapas de minha caminhada terrestre, ameacei me desvencilhar das minhas “provocações sadias” e “ironias de corar frade de pedra”, para me tornar aquele “homem sério” de Antoine de Saint Exupéry, na genial criação d’O Pequeno Príncipe, uma tremenda bofetada irônica pelo escritor dada num mundo que se imaginava soerguer-se dos destroços bélicos apenas pela “cientificidade” das suas descobertas, muito embora destruições maiores pudessem acarretar para o globo terrestre.
Não tem coisa mais ridicularizável que perceber fisionomias carrancudas censurando, com olhos e muxoxos reprobatórios, grupos que se divertem criativamente, buscando alcançar a quintessência da sabedoria, ultrapassando em quilômetros a sisudez dos gerados em pé numa rede, abrindo portas e corações, enfrentando o mundo real sem abandonar o terreno de uma sadia saúde mental. Conheci uma pessoa tão recheada de “seriedade” que, transando pela vez primeira com a futura esposa, indagou com toda empáfia, quando ela externou os primeiros gemidos de gozo: – Onde foi que você aprendeu isso?
Entretanto, um amigo psicanalista gaúcho, médico pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre me proporcionou intensa alegria recentemente, ao me presentear com um livro da sua autoria chamado Humor é Coisa Séria, Editora Arquipélago, Porto Alegre, 2014. Seu nome é Abrão Slavutzky, judeu nascido em Porto Alegre, 1947, com formação psicanalítica em Buenos Aires (1972-1979), que costuma parafrasear Ítalo Calvino, dizendo que “num mundo pleno de tragédias, devemos tentar identificar aquilo que, em meio ao trágico, é tragicômico ou cômico, e preservar o humor”.
Seu livro apresenta, numa conjuntura bastante complexa como a atual, um panorama inédito e provocativo do altamente revolucionário poder do humor. Seu texto tem o alcance de um tratado, devendo ser lido sem qualquer empáfia, nele estando contido desde a sabedoria de Dom Quixote, até o desenvolvimento da graça infantil, também analisando o humor como centelha para o sexo, envolvendo Woody Allen, Guliver, Hamlet, o Analista de Bagé, além do mestre Freud, sem falar dos filmes notáveis de Charles Chaplin, o genial Carlitos, jamais relegando o humor utilizado pelos judeus nos campos de concentração como recurso essencialmente sobrevivencial. Sempre rememorando a lição deixada pelo poeta Pablo Neruda: “Porque aprendi luchando que es mi deber terrestre propagar la alegria”.
O Slavutzky, no seu magistral compêndio de leitura, nos convoca para uma tripla viagem: pela história da cultura, pelas condições psicológicas que favorecem a eclosão do humor e pelas intimidades de um consultório de analista. Segundo ele, “o humor aproveita as pedras do caminho para construir sua casa”, além de “humor e teoria não formariam um par para dançar” e “o deprimido é o guardião do seu próprio cemitério”. Sempre destacando a “queixite” como doença endêmica típica dos mal amados e pessimamente comidos.
Segundo seu prefaciador, Renato Mezan, Slavutzki “expressa gratidão a Carlitos, que o salvou de uma espécie de autismo, e a Jacó Guinsburg, que por sugestão sua realizou, aos 90 anos, a primeira tradução integral para nossa língua de Tevye, o leiteiro, o clássico da literatura iídiche que devemos à pena agridoce de Scholem Aleichem”. Que muito favoreceu nele, Slavutzki, a possibilidade de “ultrapassar a seriedade para chegar à sabedoria”.
Dois pontos altos, dentre as dezenas de partes inesquecíveis do livro, nos possibilitam refletir sem moralismos nem puritanismos. O primeiro deles é a transcrição de parte do capítulo 11 d’A Verdadeira História do Paraíso, do humorista Millôr Fernandes, que foi expulso da revista O Cruzeiro, por pressão da Igreja Católica, à época muito mais desconectada da realidade que hoje. Ei-lo: “Eva, de repente, descobrindo uma bela cascata, resolveu tomar um banho de rio. A criação inteira veio então espiar aquela coisa linda que ninguém conhecia. E quando Eva saiu do banho, toda molhada, naquele mundo inaugural, naquela manhã primeval, estava realmente tão maravilhosa que os anjos, arcanjos e querubins, ao verem a primeira mulher nua sobre a Terra, não se contiveram, começaram a bater palmas e a gritar, entusiasmados: “o Autor! o Autor!! o Autor!!”. E o Brasil ficou muito mais engraçado e a revista degringolou com o passar do tempo.
O segundo ponto alto é o humor acontecido no Holocausto, embora ninguém possa acreditar que houvesse tido sorriso num dos maiores infernos da História. Mas houve, conforme testemunho dos arquivos secretos do Gueto de Varsóvia, verdadeiro campo de concentração, no qual meio milhão de judeus foram confinados em uma área de dois ou três quilômetros quadrados. Eles mostram como os judeus viviam, escreviam, educavam e faziam política, inclusive humor. Nas palavras de uma sobrevivente: “Sem humor teríamos todos cometido suicídio. Buscamos permanecer humanos e nos divertir em situações difíceis…. O que me ajudou foi não pensar em milagres, não tomar as coisas tão a sério, como se eu pensasse que esta era a proporção que devia dar, e foi esta atitude que me ajudou”.
Dois exemplos de humor em pleno Holocausto:
1. “Goebbels era fascinado por falar às massas e Goering por se exibir com seus uniformes. Chegando ao inferno, os dois receberiam os piores castigos: para Goebbels, mil rádios e nenhum microfone; para Goering, mil uniformes e nenhum espelho.
2. Um oficial da SS está sentado num banco de praça, lendo a revista antissemita Der Sturmer. Um judeu senta-se ao seu lado, e o nazista, para provocá-lo, lê em voz alta a frase típica do jornal: – Os judeus são a nossa desgraça. – Quem me dera – suspira o judeu.
Viva a criança de seis anos que proclamou um dia: “A alegria é uma gargalhada pendurada na gente, uma boca cheia de risadas”!!.
(Publicada em 21.07.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves