HISTÓRIA COM O DOM


O fato aconteceu no Recife, Pernambuco, cidade de passados libertários, Frei Caneca e outros heróis inesquecíveis. E quem conta tim-tim por tim-tim é o próprio Dom Hélder Câmara, ex-arcebispo metropolitano de Olinda e Recife, tido e havido à sua época, por muitos intelectuais reacionários e catolicões desenxergantes, como comunista muito subversivo. Eis o fato por ele contado:

“Lembro-me de certa vez que me convidaram para a inauguração duma grande empresa. Era dia de intenso calor, mas os escritórios dos diretores tinham o conforto dos aparelhos de ar-condicionado. Os garçons passavam travessas e mais travessas com garrafas de uísque. Uma, duas, muitas vezes. Eu tomava apenas refrigerantes – não por virtude excessiva, pois até gosto de um pouco de vinho, o que não me causa qualquer problema de ordem moral –, porque o álcool parece não gostar de mim… Em dado momento, um dos convidados se aproxima de mim e, grosseiramente, me diz: “Ora, ora, Dom Hélder!! Como é que vai a sua demagogia? O senhor ainda tem coragem de dizer que vivemos cercados de fome e miséria aqui em Recife?”. Outras pessoas juntaram-se a nós, encorajadas por aquelas provocações e querendo prossegui-la. Eu respondi a todos, em alto e bom som: “Vejam só!! Eu estava tranquilo no meu canto, mas vocês preferiram provocar-me… Pois eu lhes garanto que se sairmos todos nos belos carros que vocês têm, em poucos minutos eu os mergulharei num ambiente da mais terrível fome e miséria…”

Para surpresa minha, aceitaram o desafio. Em não mais do que dez minutos chegamos a uma sapucaia, um desses locais onde os serviços públicos despejam, e depois incineram, o lixo da cidade. Eu conhecia bem o local… Chamei um conhecido, que é funcionário da Prefeitura e por ali trabalha. Ele tem, a propósito, o apelido de Doutor Lixeira… Longa experiência lhe ensinou a ver, no meio daquele lixo todo, o que é que ainda pode ser aproveitado como alimento. É ele quem estabelece a classificação: comida de primeira classe, que os funcionários da limpeza pública reservam para si mesmos; comida de segunda classe, boa ainda para as pessoas que nada têm do que viver e se alojam por ali, disputando o refugo com os urubus que ciscam como galinhas pretas; comida de terceira classe, que se coleta e guarda para vendê-la depois nas tendinhas de quarta ou quinta classe, onde qualquer coisa serve para encher a barriga daqueles que vivem encharcados de álcool…

O Doutor Lixeira explicou tudo isso, muito direitinho, às dezenas de chefes de empresa que me haviam acompanhado até ali. Tive a impressão de que marcara profundamente o meu ponto, ensinando-lhes uma dura lição … Mas qual!! No dia seguinte, um deles me chamou ao telefone e diz: – Dom Hélder, que sujeito formidável aquele Doutor Lixeira!! Ele tem muita iniciativa! Bem que poderíamos empregá-lo …. Foi terrível!! Como estamos longe de ver o espírito do Bom Samaritano! … Não basta socorrer as vítimas. É necessário atacar as causas dessa inaceitável infelicidade”.

Já dá para entender por que o saudoso Dom Hélder Câmara era chamado de comunista, inclusive por inúmeros colegas seus de episcopado?

(Publicado no Jornal do Commercio, Recife, Pernambuco, 24.01.2014
Fernando Antônio Gonçalves