GRELHAS CONCEITUAIS E GRALHAS DE PALCO


Nesta primeira quinzena de 2010, quando o Haiti sofre tenebrosa destruição, o Brasil perdendo alguns dos seus valorosos filhos, militares e civis missionários, a editora Bregantini, São Paulo, presenteia a sociedade brasileira responsavelmente solidária com um Dossiê Cult Edição Especial. Que enfatiza, através de ensaios lucidamente contemporâneos, três ícones da atual filosofia francesa: Giles Deleuze (1925-1995), Paul-Michel-Foucault (1926-1984) e Jacques Derrida (1930-2004).

O dossiê traz uma vantagem pra lá de auspiciosa. Todos os ensaios lá contidos são de autoria de autores brasileiros, docentes especialistas de nomeada, inseridos academicamente no ensino superior do país, que urge cidadanizar-se cada vez mais.

Logo na Introdução, os editores advertem sobre o reconhecimento parcial e limitado de cada ser humano. Imprescindível para um sentir-se “situado e datado”, expressão consagrada por Paulo Freire, favorecendo a própria sobrevivência existencial. Um reconhecimento que carrega duas sequelas congênitas: a da imprecisão elucidatória e a do encobrimento das diferenças e das sinuosidades que caracterizam a realidade evolucionária do derredor. Nela, ainda se eslarece com propriedade: “o pensamento conceitual desperta a ilusão de apreender a realidade, quando esta, de fato, não cessa de escoar por meio de suas redes categoriais”. E ainda repete Henri Bergson: “pensar consiste, ordinariamente, em ir dos conceitos às coisas, e não das coisas aos conceitos”.

A leitura dos curtos, ainda que primorosos ensaios, do dossiê, favorecerá a diferenciação por demais significativas entre grelhas conceituais e gralhas de palco, num ano eleitoral onde maa situação, algumas vezes deleteriamente aética, pretende permanecer com as rédeas do mando, disputa com uma oposição nem sempre dotada de estratégias critico-construtivas convincentes.

Em ano eleitoral como o de 2010, as grelhas conceituais estarão sendo sobrepujadas, em inúmeras ocasiões, pelas gralhas de palco, doidivanas na sua maioria, que poderão ser identificadas com bastante facilidade nos mais diferenciados ambientes. Ostentando seus principais sinais identificatórios: ojeriza às análises contextualizadoras, apegadas num fofoquismo corporativista, hoje mais solidificado através dos inumeráveis recursos eletrônicos.

O “me-disseram fofocal” campeia nas praias, nas folias de Momo, nos barzinhos de calçada, nas feiras, missas e cultos, amassos, e-mails, barbearias e salões de beleza. Os comentários sendo emitidos por quem se posta como “entendedor de tudo”, plenipotenciário e multiespecialista em fatos e feitos acontecidos até além do próprio Cosmo. As gralhas incrivelmente desatentas a uma reflexão feita pelo saudoso jornalista Cláudio Abramo, não muito recente: “No fundo acho que está tudo errado. Perdemos os caminhos e as bússolas, nessa confusão conceitual em que nos mergulhamos.

Sei que de todos os lados há erros, safadezas e injustiças, e até crimes, alguns horríveis. Mas existe uma espécie de solidariedade fraternal, a nível epidérmico, que nos faz sempre voltar os olhos para os mais desprotegidos e os mais desvalidos da terra. Não sei, exatamente, quanto se avançou nesse terreno, mas sei que algo deverá surgir de tudo isto, dessa gigantesca agonia de um mundo que está falido para que renasça um outro, em que as idéias e os conceitos sejam novos e duradouros”.

Como sugestão nordestinamente amiga, radicalmente brasileira, recomendaria uma releitura da conferência realizada por Jacques Derrida, em 2004, no Brasil, pouco antes do seu encantamento. Ela se encontra inserida no livro “Jacques Derrida: Pensar a Desconstrução”, editora Estação Liberdade. De título “O Perdão, a Verdade, a Conciliação: Qual Gênero?”, o texto bem que poderia ser distribuído nos sempre necessários eventos de Direitos Humanos realizados nos quatros cantos do país.

Uma das saídas?. O pensar é da autoria do professor Juvenal Savian Filho, no seu ensaio “Derrida e a beleza da honra da razão”: “Continuar a desconstrução e ver que uma ética fundamentada apenas na idéia iluminista de ‘dever’ não é suficiente para atender às necessidades do humano. Com base nisso, pode-se pensar numa espécie de hiperética, aberta às diferentes formas de captar a verdade da experiência humana, como são a fé e a crença, a estética etc. E isso não significa irracionalismo pois, na base dessa atitude, há uma crítica racional e uma tentativa da própria razão no sentido de desencalhar-se”.

PS1. Com integral solidariedade, salvemos o Haiti, sem olvidar jamais as desassistidas crianças brasileiras. Honrando a memória da bravíssima Dra. Zilda Arns.

PS2. Excelente o artigo do Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo de ontem. Excelente enquadrada num empavonado rottweiller sem dentes.

ALGOMAIS, 18/01/2010
Fernando Antônio Gonçalves