FRANCISCO E OS LOBOS
Um companheiro de caminhada cristã vez por outra deixa na portaria de onde moro umas xeroxes contendo informações várias de conteúdos significativos, deixando-me mais antenado com o que se passa fora dos noticiários mais “petroleiros”. Num deles traz uma informação preciosa: o lançamento, em edição lusa, do livro Francisco entre os lobos – o segredo de uma revolução, do escritor Marco Politi, considerado o mais célebre vaticanista da atualidade.
No primeiro parágrafo da notícia, um tento extraordinário do papa Francisco: “O convite feito durante a sua visita em 25 de abril à Palestina e a Israel, produziu no primeiro domingo de junho um desarmado encontro, para orações pela paz, com Shimon Peres, presidente de Israel, e Mahamoud Abbas, líder da autoridade palestina. Não faltou a oração de São Francisco e uma oliveira plantada nos jardins do Vaticano”. E mais informa: “Jorge Bergoglio fez os dois líderes esquecerem as ofensas do antecessor, Joseph Ratzinger, um trapalhão que ofendeu os islâmicos ao atacar, em citação proferida em aula magna, o profeta Maomé e, logo depois, reintroduzir a antiga missa tridentina, onde se pede a Deus a conversão dos judeus ao cristianismo”.
O livro de Marco Politi, lançado pela Editori Laterza, “lembra o fato de o eleito Bergoglio ter recusado, no vestuário destinado à troca de roupas, a mozzetta (o colete púrpura bordado em ouro), os sapatos vermelhos e o anel de ouro. Na sua primeira missa como papa, ainda enclausurado com o colégio cardinalício, na qual usou sua desgastada mitra de cardeal de Buenos Aires, também recusou a genuflexão dos votantes, “usou seu antigo crucifixo prateado e o velho par de sapatos ortopédicos deformados pelo uso cotidiano. E mais ainda: permaneceu afastado do trono e abraçou a todos, como iguais.” Resumindo: nada de hábitos imperiais, automóveis de luxo e amplo e requintado apartamento papal, preferindo um modesto quarto no hotel de trânsito de Santa Marta, utilizando seu refeitório comunitário, tomando café de máquina.
Como cristão ainda anglo-católico, tenho uma admiração profunda pelo papa Francisco, pedindo ao Pai cotidianamente que o proteja dos “lobos travestidos de ovelhas” que o rodeiam, onde Marco Politi cita alguns que foram apeados da então ingovernável Cúria, inclusive o Banco do Vaticano, também defenestrando, em outubro passado, o cardeal Tarcísio Bertone, então chefe de Estado, poderoso mandachuva que fazia e desfazia.
A Cúria Romana prepara-se para uma ampla reforma de seu governo, onde Francisco pretende “adotar a regra do colegiado, da horizontalidade e da responsabilidade compartilhada”. Até Dario Fo, ateu e Prêmio Nobel de Literatura 1997, louvou a iniciativa papal, condenando quem “pretende linchá-lo” por se posicionar contra um mundo preocupado apenas com os grandes negócios.
Segundo o noticiário xerocado que me chegou às mãos, na abertura do livro o autor lista os atuais inimigos do papa Francisco, mencionando a posição do procurador antimáfia calabresa, Nicola Gratteri: “A máfia financeira está sendo perturbada nos seus percursos por um pontífice que rema contra a corrente, contra o luxo, é coerente e tem credibilidade. E lança sinais contra o crime organizado que se nutre do poder e da riqueza” E alerta: “Não sei se a criminalidade organizada fará algo em reação, mas, certamente, está refletindo, e isso tudo é muito perigoso”. E entre os lobos, o brasileiro Dom Odilo Scherer “que defendeu a turba que comandou uma lavanderia chamada IOR”.
Os primeiros gestos de Francisco revelam sua vontade de “desmontar o caráter imperial do papado, o absolutismo cesarista, semidivino, alimentado pela aura da infalibilidade, que durante séculos sedimentou na corte papal e que está contido no próprio título, pagão, dos sucessores de Pedro: sumo pontífice”. Ratificando o que ele confessou a Eugenio Scalfari, fundador do jornal La Repúbblica, em outubro de 2013: “Os chefes da Igreja foram muitas vezes narcísicos, adulados e lisonjeados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado”.
É chegada a hora, para o papa Francisco, de implantar a “colegialidade” sancionada pelo Concílio Vaticano II, posto que Papa e bispos são todos “vigários de Cristo”. E é o próprio Francisco quem dá a direção: “Somos pastores próximos das pessoas, amamos a pobreza, não temos uma psicologia de ‘príncipes’”. E foi além: “o bispo não deve ser nem príncipe nem funcionário. E nem um burocrata atento principalmente à disciplina, às regras, aos mecanismos organizacionais”.
Recomendo vivamente aos movimentos cristãos católicos que debatam sem temor a Exortação Apostólica do Papa Francisco Evangelii Gaudium – Alegria do Evangelho, sempre buscando assimilar as diferenças notáveis entre a Tradição divina da Vinda de Deus e a tradição humana da busca de Deus, explicitadas pelo saudoso Pe. José Comblin, em sua obra póstuma O Espírito Santo e a Tradição de Jesus:
– A Tradição da Vinda de Deus está no mundo real da vida. A tradição humana eclesiástica transmite um mundo simbólico.
– A Tradição evangélica ignora a distinção entre sagrado e profano. A tradição eclesiástica é tradição do sagrado.
– A Tradição da Vinda de Deus sempre é a mesma, porque sempre o mesmo Deus vem. Mas a tradição eclesiástica muda.
– A Tradição evangélica é universal, a mesma no universo. A tradição eclesiástica está ligada a uma cultura, inclusive quando se pretende universal, porque impõe a todos a mesma cultura.
– A Tradição da Vinda de Deus não quer o poder. A tradição eclesiástica busca o poder.
– A Tradição da Vinda de Deus anuncia a liberdade. A tradição eclesiástica não quer a liberdade.
– A Tradição evangélica dá prioridade aos pobres. A tradição eclesiástica não dá valor aos pobres, salvo para receber esmolas.
– A Tradição da Vinda de Deus exige uma conversão pessoal. A tradição eclesiástica transmite-se por forças sociais.
Francisco chegou em muito ansiada hora. Em outubro de 2013, quando se deslocou para Assis, foi saudado por inúmeras faixas na estrada, que proclamava: “1226-2013. Fizeste falta, Francisco!”
No mais, uma boa conversa grupal sobre A Origem da Bíblia – Um Guia para Perplexos, de Lee Martin McDonald, Paulus, 2013. Um conhecimento sólido contras as críticas populares simplistas e as imposturas advindas dos sem criticidade alguma.
(Publicado em 08.12.2014, no site do Jornal da Besta Fubana – www.luizberto.com
Fernando Antônio Gonçalves