FÉRIAS E REFLEXÕES


Amigo-irmão, Arãozinho Parnes, sediado em Brasília, encarece por e-mail a indicação de “leituras de férias que melhor solidificassem a caminhada cidadã da sociedade brasileira, a carecer de doses maciças de um humanismo libertador, contaminada atualmente por hedonismos individualistas e salamaleques fundamentalistas desconfortáveis ”.

Confesso que a “provocação” do meu irmão israelita me deixou com responsabilidades metodológicas, na busca de leituras prazerosas e construtivas para diferenciados gostos.

Para a gente adulta quarentona que não conheceu as atrocidades cometidas pelo regime militar implantado no Brasil em 1964, indico um livro de um notável intelectual cristão, Alceu Amoroso Lima. Editado pelo Instituto Moreira Sales, Diário de um Ano de Trevas: cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha Madre Maria Teresa – janeiro de 1969 / fevereiro de 1970, é leitura necessária para relembrar os anos de chumbo, um verdadeiro período de terror, instaurado sob a complacência da Igreja Católica, com as bravas exceções que muito contribuíram para a edificação de uma histórica resistência, de inesquecíveis heroísmos. O Dr. Alceu, que não tinha liberdade de publicar seus textos na imprensa amordaçada de então, traçou, em cartas dirigidas à filha, um percurso de crescentes desilusões e desânimos sobre uma época vexaminosa, vivenciada a partir do Ato Institucional no. 5, dezembro de 1968. Um dos organizadores do livro, o Frei Betto, foi aluno de Dr. Alceu, no curso de jornalismo, na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo a amizade se alicerçado quando Dr. Alceu aceitou de público defender um grupo de frades dominicanos. O último encontro dos dois aconteceu no Mosteiro da Paz, das monjas beneditinas, cuja abadessa era sua filha Maria Teresa Amoroso Lima (1929-2011), destinatária e depositária das cartas agora tornadas públicas. Segundo Betto, “os leitores destas cartas haverão de apreciar a lucidez do autor, sua profunda erudição, a crítica profética à ditadura militar e à Igreja, as recordações do Rio de Janeiro de sua infância e juventude, as referências a celebridades da literatura, do catolicismo e da política do Brasil e do mundo, as ironias concernentes a imortais da Academia Brasileira de Letras, num tom coloquial com que abre seu oração e sua mente à filha monja”.

Para cristãos militantes de todas as denominações, não fundamentalistas nem fricotentos, recomendo um retrato notável do Jesus histórico, hoje ensombrado por uma imagem brancosa, pacifista, impressionantemente não real. O livro, Zelota – a vida e a época de Jesus de Nazaré, best-seller nº do New York Times, é de autoria de Reza Aslan, especialista em temas religiosas, graduado e pós-graduado em Harvard e na Universidade da Califórnia, cujo livro No god, but God, foi traduzido para treze idiomas e considerado um dos cem livros mais importantes dos anos 2000. A mais fascinante biografia do Jesus histórico por mim lida até hoje deveria ser leitura obrigatória para quem desejasse obter uma acurada compreensão das atividades desenvolvidas por um tremendo revolucionário, capturado, torturado e executado como criminoso de Estado.

Para quem é historicamente curioso, a leitura do livro Amor & Capital – a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução, de Mary Gabriel, que trabalhou por mais de duas décadas como editora da agência de notícias Reuters, em Washington e Londres. O lado humano e familiar de um homem cujas obras redirecionaram politicamente o mundo, embasado em pesquisa que inclui material inédito, a autora soube aliar o contexto histórico-político da Europa do século XIX, a evolução da filosofia de Marx e a trajetória de cada personagem, principalmente o papel decisivo de Jenny von Westphalen, “a bela e intelectualizada filha de um barão prussiano, que se casou com Marx quando este era apenas um jovem brilhante e promissor, porém sem riqueza ou futuro garantidos”. Segundo Gabriel, “é difícil não se emocionar com as condições miseráveis em que a família Marx viveu a maior parte do tempo, ou com a intensidade trágica de suas perdas e ainda, no meio de tanto sofrimento, com a força do amor que uniu Marx a Jenny e aos filhos”. Uma leitura para desidiotizados culturais e mentes progressistas que sabem apreender a obsessão dos verdadeiros revolucionários, dos inclinados a “entusiasmos selvagens, capazes de destruir seu próprio casamento”.

Para quem aprecia biografia, uma oportuníssima autobiografia: Nelson Mandela – Longa Caminhada até a Liberdade, Curitiba, PR, Nossa Cultura, 2012. Uma das vidas mais extraordinárias do século XX, segundo o Washington Post Book Review. Um best seller internacional que descreve o desenvolvimento de uma consciência política, os anos de clandestinidade, a condenação à prisão perpétua em 1964 e os relatos importantes que antecederam o triunfo comovente da primeira eleição multirracial realizada na África do Sul, em abril de 1994. Poderosa fonte para aqueles que buscam a libertação histórica de todos os povos, inclusive a do Povo Brasileiro. Uma história de bravuras e estratégias comportamentais, um livro dedicado aos seis filhos do Mandela, seus vinte e um netos e seus três bisnetos, e “para todos os meus camarada, amigos e compatriotas sul-africanos a quem sirvo e cuja coragem, determinação e patriotismo continuam sendo minha fonte de inspiração”.

Para os ingressos no Ensino Médio Profissionalizante e que desejam acelerar seus condicionamentos infanto-juvenis, ampliando as “enxergâncias” sobre como tudo aconteceu, o livro de Christopher Lloyd, O Que Aconteceu na Terra? – A História do Planeta, da Vida & das Civilizações, do Big Bang até Hoje, RJ, Intrínseca, 2011, é um relato extraordinário da nossa Terra, recontado de uma forma envolvente, atraente e imparcial. E que responde perguntas do tipo Quem foi nosso ancestral mais antigo?, Por que a Democracia começou na Grécia?, Como o Islã desencadeou a globalização?, Qual a idade do Universo?, entre muitas outras, ressaltando que tudo está conectado, tudo se originando num quase invisível ponto, uma “singularidade”, como os cientistas gostam de classificar.

Para quem admira um livro repleto de trechos curtos, imensamente profundos, que requerem paradinhas reflexivas reestruturadoras, capazes de negar ou subverter os cotidianos acomodados, nada melhor que a nova edição, revista e ampliada, do Livro do Desassossego, do notável poeta luso Fernando Pessoa, RJ, Companhia das Letras, 2011. Que no livro assim se expressou: “Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os sutilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma”.

Por fim, como 2014 é ano eleitoral, um livro de uma inteligência maurícia, hoje integrando o elenco docente do Mestrado em Antropologia da Universidade de Salamanca, na Espanha: Mário Hélio Gomes de Lima, ex editor da Massangana Editora da Fundação Joaquim Nabuco, atualmente pesquisando o cancioneiro e romanceiro ibero- americanos: Casa Grande & Senzala – O livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições, SP, É Realizações, 2013. O livro oferece uma seleção de passagens de Casa Grande & Senzala, ensejando ao leitor a apreensão de uma visão panorâmica da riqueza da linguagem de Gilberto Freyre, onde ele demonstra magistralmente o “equilíbrio de antagonismos”. Um livro de menos de 200 páginas, mas imensamente gigante pelo talento de pesquisador do Mário Hélio, um excepcional ex companheiro de trabalho da Fundação Joaquim Nabuco, a universidade minha e de muita gente.

PS. Um 2014 porreta para todos nós! Que o Menino Muito Arretado nos abençoe sempre, pondo-nos nas trilhas da Sua Mensagem Libertadora!!
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Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social.

(Publicada em 30.12.2013, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves