FÉ E ESPIRITUALIDADE


De uma amiga nossa, Alair Melo, leitora assídua de livros, recebo um presente cativante, o livro Fome de Deus – Fé e Espiritualidade no Mundo Atual, do Frei Betto, SP, editora Paralela, 2013. Segundo o aplaudido autor, “nada que é feito com amor e por amor é pecado, pois o amor não pensa em si mesmo e não busca o seu interesse; o amor é justo, não é discriminador, não explora o trabalho alheio, nem favorece a opressão; o amor é social, procura o bem da coletividade, liberta os oprimidos; o amor não tem prazer na injustiça, mas se alegra com a fraternidade entre as pessoas”.

O Betto, com sua arguta lucidez, faz algumas ponderações que bem poderiam servir de mote para encontros e celebrações de cristãos, inúmeros deles repletos de salamaleques de baixa categoria, pouco representativa da verdadeira caminhada traçada pelo Homão da Galileia, nosso Irmão Libertador. Eis uma amostra de algumas das suas ponderações:

1. Pena que a confissão religiosa que celebra a vida como dom maior de Deus adote como símbolo um instrumento de morte. Cruzes são encontradas nos cemitérios sobre tumbas. Não é o caso de Jesus, que deixou vazio o seu túmulo de pedras. Sua morte não é o fator central da fé cristã. O fator central é a sua ressurreição. Como diz Paulo, não houvesse Jesus ressuscitado, a nossa fé seria vã (1Cor 15,14).

2. A predominância da cruz incutiu no catolicismo uma espiritualidade lúgubre. Padres e beatas quase sempre de preto. O riso, a alegria, as cores, parecem banidos da liturgia. Enfatizava-se mais a morte de Jesus que a ressurreição. Mais a dor que o amor.

3. É vergonhoso constatar que, hoje, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), mais de UM BILHÃO de pessoas vivem, no mundo, em estado de desnutrição crônica. Isso em países ditos cristãos, muçulmanos, budistas… Para que serve uma religião cujos fiéis não se sensibilizam com a fome alheia?

4. A espiritualidade constitui o fundamento, a base, a motivação de nossa vida interior subjetiva. Dentro do cristianismo, existem várias famílias espirituais: pentecostal, carismática, militante… No catolicismo, temos as espiritualidades dominicana, beneditina, franciscana, jesuítica, das filhas de Maria, dos congregados marianos, uma enorme variedade de tradições ou motivações espirituais, as quais cada um busca as suas referências.

5. Jesus tinha fé como nós. Tenho encontrado amigos que, ainda por influência de uma catequese equivocada, imaginam que Jesus era homem por fora e Deus por dentro, e que a consciência dele permanecia diretamente conectada com Deus Pai. Isso é pura mitologia!!

6. Os místicos de todas as religiões e correntes espirituais ensinam que a oração é como a relação entre duas pessoas que se amam: do flerte, repleto de indagações e fascínios, nasce a proximidade. O namoro é feito de preces, pedidos e louvores. O noivado favorece a intimidade de quem se abre inteiro à presença do outro. Vira os amados pelo avesso. As palavras não são necessárias. O silêncio plenifica.

7. Deus é, hoje, o mais intrigante e inquietante objeto de desejo. Há uma infinidade de intermediários oferecendo ao mercado da credulidade o Produto Divino em diversas embalagens – do esoterismo arcaico ao pentecostalismo extático, das premonições zodiacais à mídia eletrônica monitorada por pastores milionários.

8. Por que a Teologia da Libertação incomoda tanto? Por não aceitar essa divisão de fronteiras estabelecida pelo capital e exigir que a fé tenha consequências sociais e políticas. Não se pode amar a Deus no espaço doméstico enquanto se presta culto ao mercado que, todos os dias, leva à falência, ao desespero e à morte milhares de empobrecidos pela acumulação privada da riqueza.

O livro do Betto encoraja a ampliação da incipiente criticidade, nos fazendo abandonar concepções ingênuas e alienadas, nos preparando para leituras mais aprofundadas sobre Jesus de Nazaré, aquele pregador itinerante que iniciou um movimento revolucionário, de comunidade em comunidade, ação conscientizadora que o levou ao madeiro, tido e havido como criminoso de Estado, que postulava novos ambientes para que todos tivessem vida e vida em abundância.

Em mais época natalina, onde a lucratividade das vendas está muitos furos acima das significações da data, permito-me recomendar aos antenados leitores da Besta Fubana, duas outras leituras, que aprofundariam o conteúdo do livro do Betto. A indicação primeira é o livro Zelota – A Vida e A Época de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan, RJ, Zahar, 2013. História de um rebelde carismático, acontecida há mais de dois mil anos, que desafiou a ordem estabelecida e as hierarquias religiosas, pleno de paixão e contradições, sem as pacificidades que lhe impuseram após as legislações oportunistas de Constantino.

Uma segunda leitura, bem mais contemporânea, é a obra póstuma do padre José Comblin, O Espírito Santo e a Tradição de Jesus, São Bernardo do Campo, SP, Nhanduti Editora, 2012. Temas de outrora, agora desenvolvidos com mais acuidade crítica, sob tema “É preciso voltar a ser livre”. Apresentando compreensivelmente o evangelho para irmãos contemporâneos, numa linguagem didaticamente desempolada, distanciada dos que nada desejam transformar, apenas anestesiar. Para manter tudo como antes, no Reino de Abrantes, que não é o daquela jovem peladista que andou mostrando suas “propriedades” para os playboys da conjuntura, de neurônios mínimos e de mãos “calejadas” pelo vai-e-vem.
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Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social.
(Publicada em 13.01.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves