FÉ & CETICISMO


Salvo raríssimas exceções, os textos religiosos são enfadonhos, não sedutores e sentimentaloides, repletos de uis e ais que enchem o saco dos mais equilibrados. Não percebem seus autores que uma fé sem algumas dúvidas equivale um corpo humano sem anticorpos.

Muitos cristãos levam uma vida levianamente irresponsável para se ocuparem com indagações mais complexas sobre a sua experiência religiosa. E não conseguem responder indagações dos mais jovens e inquietos: Por que Deus permite o sofrimento?; Como um Deus de amor é capaz de mandar alguém para o inferno?; Por que o Cristianismo não é mais inclusivo?; Como pode uma religião estar “certa” e as outras “erradas”?; Por que tantas lutas foram travadas em nome de Deus?; Como o Cristianismo se tornou desacreditado pela Ciência?; Qual a verdadeira história da cruz e a realidade da ressurreição?; Para onde caminha a cada vez mais renhida porfia entre os que possuem fé arraigada e os que demonstram sólido ceticismo?

No último feriadão, com a sofreguidão de cada vez mais apaixonado pelo Homão da Galileia, nosso Irmão Libertador, li um livro recomendado por irmão bispo anglicano paulista que muito admiro de longa data. De título A fé na era do cristianismo: como a razão explica as crenças divinas, editora Campus, 2008, seu autor, Timothy Keller, é pastor da Igreja Presbiteriana do Redentor, Manhattan, Nova York, que reúne quase seis mil fiéis em cinco cultos, com uma série de igrejas filiadas mundo afora.

De conhecimento enciclopédico, Keller fornece uma visão consistente entre o debate sobre a fé para os que têm dúvidas e para os que desejam reavaliar suas próprias convicções, saindo das infantis convicções para uma reflexão adulta, tal e qual fez São Paulo, o notável catapultador da mensagem crística, tornando-a sementeiramente conhecida através das suas cartas, que antecederam os quatro escritos evangélicos.

Para os que possuem uma crença bipolar, altas certezas em determinados pontos e péssimas convicções em outras postulações, Keller adverte: “Uma fé sem algumas dúvidas é como um corpo humano sem anticorpos. Indivíduos que levam a vida levianamente, demasiado ocupados ou indiferentes para fazer indagações difíceis a respeito do porquê de terem fé acabarão se descobrindo impotentes tanto diante da experiência de uma tragédia quanto das perguntas insistentes de um cético inteligente. A fé de alguém pode desmoronar praticamente da noite para o dia, caso a pessoa tenha deixado de ouvir com paciência ao longo da vida as próprias dúvidas, que só devem ser descartadas depois de muita reflexão”.

Lembro-me do meu único irmão, hoje geólogo de nomeada radicado na Bahia, que um dia, em 1967, quando da cheia que transtornou o Recife, ouviu de um sacerdote romano, na missa dominical que frequentava, que “Recife tinha sofrido a enchente porque estava pecando demais”. Uma afirmação imbecilizante que o fez retirar-se da cerimônia e abandonar suas práticas religiosas, tornando-se um contundente quase agnóstico de moral ilibada e compromisso social consistente.

Acredito piamente que, hoje, o maior “fabricante” de ateus se encontra no setor farisaico das religiões mundiais. Os hipócritas, sempre movidos pelo desespero de ver pecado por todos os cantos, posto que se sentem ansiosos demais, a insegurança, a irritabilidade e a ansiedade dominando todas suas existências, refletindo em afirmativas ferozes, defensivas, moralistas, num ódio extremado por outros estilos culturais, como se todas as demais religiões não fossem legitimadas pelo amor da Criação.

Uma aparente encruzilhada é descrita pelo autor, nos tempos de século XXI: “indivíduos mais entusiasmados com a justiça social eram relativistas morais, enquanto os moralmente rígidos aparentemente não davam bolas para a opressão reinante no mundo todo”. Nos dois setores, o Cristianismo parece tornar-se caminho inviável, incapaz de trilhar caminhos alternativos, onde indispensável se torna a derrubada de três barreiras: a da baixa cognitividade sobre Cristianismo e demais religiões, o orgulho de ser sempre o dono da verdade e o guetismo, onde apenas são “autênticos” os que pensam de um modo único, sempre ruminante.

Com muita propriedade, Keller cita Dietrich Bonhoeffer, mártir luterano, que era pastor, em Londres, de duas igrejas de língua alemã, que voltou para seu país para participar de um seminário da Igreja Confessante, solidário para com os que se negaram a assinar juramento de fidelidade aos nazistas. E que proclamava: “Não é um ato religioso que faz o cristão, mas a participação nos sofrimentos de Deus na vida laica. Isso é metanoia (arrependimento); não pensar em primeiro lugar nas próprias necessidades, nos próprios problemas, pecador e temores, mas permitir-se o envolvimento como fez Jesus Cristo.”

Timothy Keller parece ratificar o pensamento do rabino Abraham Joshua Heschel, talvez o mais importante teólogo do judaísmo contemporâneo, ativo defensor dos direitos civis e da liberdade religiosa: “Costuma-se culpar a ciência secular e a filosofia antirreligiosa pelo eclipse da religião na sociedade moderna. Seria mais honesto culpar a religião por suas próprias derrotas. Ela decaiu não porque foi contestada, mas porque se tornou irrelevante, enfadonha, opressiva e insípida. Quando a fé é completamente substituída pelo credo, o culto pela disciplina, o amor pelo hábito; quando a crise de hoje é ignorada pelo esplendor do passado; quando a fé se torna um mero objeto herdado em vez de uma fonte de vida; quando a religião fala somente em nome da autoridade em vez da compaixão, sua mensagem se torna sem sentido”.

O livro do Keller é para ser sorvido em doses homeopáticas, sem pressa nem exibicionismos. Usando como mote, o lema do Comitê Estadual de Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco (CMVJ-PE), fundado em 2010: Lutar, Sempre. Desistir, Nunca.
PS1. Para Marcelo Santa Cruz, irmão de fé caminheiro.

(Publicada em 10.06.2013, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves