FATOS VERGONHOSOS


Quando o governo luso tornou público os arquivos do Santo Ofício da Inquisição, até recentemente, décadas de 1960 e 1970, mantidos no mais absoluto segredo por quase quinhentos anos, quatro pesquisadoras brasileiras da Universidade de São Paulo resolveram esmiuçar o acervo misterioso, descobrindo barbaridades praticadas no Brasil contra os judeus tornados cristãos-novos. Através de documentos, as quatro pesquisadoras comprovaram que o nosso país também foi patrocinador de atrocidades sórdidas, tais e quais as acontecidas na Europa. Inclusive com mortes em fogueiras, como aconteceu, em Lisboa, com a paraibana Guiomar Nunes.

No livro Os judeus que construíram o Brasil: fontes inéditas para uma nova visão de Brasil, SP, Planeta do Brasil, 2015, 288 p., as pesquisadoras Anita Novinsky, Daniela Levy, Eneida Ribeiro e Lina Gorenstein resolveram dedicar aos jovens o realmente acontecido no final do século XVI, ressaltando que o povo brasileiro de então não nutria ódio algum aos judeus e seus descendentes, fato comprovado nos processos da Inquisição, onde quase não aparecem brasileiros delatores. Também narra casos da população baiana que se rebelou ao negar denunciar amigos, vizinhos e colegas, fazendo com que o governador áulico da época usasse a força militar para coagir o povo. E ainda relata as bravuras de brasileiros da própria Igreja Católica, a exemplo do padre Antônio Vieira, que testemunharam corajosamente contra a condenação injusta de cristãos-novos, “cuja prisão dependia mais de suas fortunas e de sua origem judaica do que de suas heresias.”

Antes de ler o livro acima citado e para quem deseja melhor se enfronhar na história vergonhosa da Inquisição, a medieval (século XIII), a ibérica (séculos XVI,XVII e XVIII), esta última com amplas raízes fincadas em terras brasileiras, o livro A Inquisição, da pesquisadora Anita Novinsky, editado pela Brasiliense, Coleção Tudo é História nº 49, com a colaboração das duas pesquisadoras do primeiro livro citado, fornece um retrato bastante nítido, critico por excelência, do que foi praticado inicialmente por incentivos pouco dignos da Igreja Católica Romana, em 1198, do papa Inocêncio III, apoiado em deliberações acontecidas no Concílio de Verona, de 1184. Posteriormente, em 1215, o IV Concílio de Latrão determinou que os judeus usassem um distintivo específico, com a finalidade de se tornarem diferenciados dos cristãos de então, numa antecipação do que seria estabelecido pelo assassino Adolf Hitler, ao obrigar, no III Reich, que todos os judeus usassem a estrela de David em suas vestimentas, “para ostentar a vergonha de sua origem”.

Para se ter uma ideia das crueldades induzidas pela Igreja Católica de então, basta que se registre que, antes da Inquisição, em Espanha e Portugal, cristãos, muçulmanos e judeus conviveram pacificamente, em mútuo repeito, moldando os dois países com um caráter único e distinto dos demais durante os tempos medievais. A própria autora explicita: “As relações interétnicas atingiam as esferas familiares. Os judeus frequentavam as festas religiosas dos seus amigos cristãos, e estes eram convidados para as cerimônias judias. … A Espanha apresentava aspectos extremamente originais. Quando os cristãos saíam em procissões com a imagem do Santíssimo para festejar a visita de um rei ou algum acontecimento relevante, os judeus caminhavam acompanhando a procissão, carregando nos braços os rolos de Torá (lei de Moisés). Como disse o hispanista Américo Castro – da simbiose dos cristãos, árabes e judeus nasceu o espanhol de hoje. E o português de hoje.”

O processo de degradação dos judeus na península ibérica levou séculos, ampliado pela inveja da burguesia cristã diante das posições de destaque alcançadas pelos judeus na península ibérica, tanto na área política quanto na área econômica, havendo inúmeros destaques de intelectuais, médicos, filósofos, professores e astrônomos. Por isso, “as três comunidades, cristã, judaica e muçulmana, faziam parte integrante da nação espanhola e cada uma sentia a terra como sua”.

A partir o século XIV, gradativamente foram ampliados os pedidos de restrição das atividades dos judeus, frequentemente acusados de ocuparem as posições mais significativas na sociedade. Em 1391, em Castela, Navarra e Aragão aconteceu um massacre em massa de judeus, vitimando 4.000 deles nas ruas de Sevilha. Um clero fanático e supersticioso insuflou uma gigantesca onda antijudaica, ocasionando a destruição de florescentes comunidades hebraicas. Tal e qual o acontecido quando da implantação do nazismo na Alemanha.

A pesquisadora Novinsky concluiu assim o seu livro A Inquisição: “Por meio de seu sistema de ameaças, de suas técnicas de perseguição e da tortura, a Inquisição garantiu a continuidade da estrutura social do antigo regime e a religião preencheu sua função político-ideológica.”

E se alguém perguntar sobre os tentáculos da Inquisição da Igreja Católica nos tempos contemporâneos, agora travestida de Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, favor pesquisar o acontecido com o famoso teólogo alemão Hans Küng, um dos mais lúcidos analistas da atualidade, autor do muito ótimo Ser Cristão, RJ, Imago, 1976, um texto escrito inclusive “para os que não creem, e no entanto indagam seriamente”, também para os que já tiveram fé, os inseguros na fé, os que oscilam indecisos e os céticos diante das suas convicções religiosas.

(Publicado em 22.02.2016, no site do Jornal da Besta Fubana – www.luizberto.com/sempreamatutar)
Fernando Antônio Gonçalves