EXPERIÊNCIAS DE ALUCINADOS


A revista Piauí 96, de setembro último, traz um excelente texto de Jonathan Crary, um estudioso que desde 1989 pesquisa formação cultural visual contemporânea na Universidade de Columbia, Estados Unidos. Intitulado O Sono Acabou, o escrito me impressionou de tal maneira que me fez adquirir o livro 24/7 – Capitalismo tardio e o fim do sono, SP, Cosac Naify, 2014, onde o primeiro capítulo é reproduzido na citada revista.

Confesso que somente a leitura do capítulo da revista me deixou impressionado com a ambição desenfreada do ser humano contemporâneo, tudo muito bem explicitado no excepcional livro Cegueira Moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida, de Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis, Zahar, 2014.

Por incrível que pareça, a Defesa dos EEUU está despendendo milhões de dólares numa pesquisa até pouco tempo inimaginável: a busca de um processo que possibilite o soldado norte-americano permanecer sem sono 24 horas durante 7 dias, sendo capaz de combater dia e noite sem qualquer vontade de dormir, em missão por todo o globo terrestre. A efetividade de tal experimento possibilitaria, em futuro não muito distante, a extensão de procedimentos quimioterápicos na efetivação de trabalhadores sem sono ou de consumidores igualmente sem sono, ensejando a erradicação de um obstáculo de primeira grandeza à voracidade do capitalismo e suas múltiplas e descabidas ambições mercadológicas num mundo cujo trabalho cidadão se encontra cada vez mais precarizado. E com comportamentos os mais tresloucados, do tipo praticado por aqueles que se levantam em plena madrugada para acessar computadores em busca de e-mails e dos últimos acontecimentos terrestres. Ou buscando conversar potocas mil com outros ansiosos por novidades sociais, econômicas, financeiras, religiosas e fofocais. E com um agravante, segundo Crary: “as milhões de conversas no Facebook podem estar relacionadas a técnicas de torturas em solitárias de Guatanamo”.

O artigo da revista Piauí pode ser resumido assim: Na Costa Oeste da América do Norte, todos os anos centenas de pássaros da espécie pardal de coroa branca migram para o norte e para o sul, no outono voando do Alasca até o norte do México, retornando para o norte durante a primavera. Tais pássaros possuem uma característica especial: conseguem permanecer acordados por até sete dias durante a migração, navegando de noite e se alimentando durante o dia. Um fenômeno da natureza.

O espantoso da história é resultado da ambição humana: nos últimos cinco anos, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos vem gastando expressivas verbas estudando a atividade cerebral de tais pássaros, tendo em vista a possibilidade de descobrir como pessoas podem ficar sem dormir, funcionando produtiva e eficientemente. Visam a criação de um soldado sem sono, ensejando a formação de combatentes por sete dias ininterruptos, eliminando neles a necessidade de sono, favorecendo a necessidade de reduzir os pelotões militares. O autor esclarece: “devem-se entender os estudos sobre a privação de sono no contexto de uma busca por soldados cujas capacidades físicas se aproximarão cada vez mais da eficácia de aparatos e redes não humanos”.

A privação do sono tem sido uma das formas de tortura sofridas pelas vítimas de custódia extrajudicial. Experimentos foram autorizados por Donald Rumsfeld para a implementação do Primeiro Plano de Interrogatório Especial do Pentágono. A vítima é privada do sono durante dois meses, com interrogatórios que beiravam 20 horas, com a vítima encerrada num cubículo onde era impossível se deitar, sob luz de alta intensidade e autofalantes de música a todo volume. Os locais eram chamados de Dark Sites (Locais Escuros) ou Camp Bright Lights (Campo de Luzes Brilhantes). E todo o processo integrava um programa de espancamentos, humilhações, reclusões prolongadas e simulações de afogamento, devidamente orientados por psicólogos de Equipe de Consultoria de Ciências do Comportamento.

Além disso, nos laboratórios militares também estão sendo pesquisadas drogas contra o medo, “impondo ao corpo humano um modelo de máquina eficaz e resistente”. E Crary faz uma reflexão alarmante: “a história mostra que inovações relacionadas à guerra são inevitavelmente assimiladas na esfera social mais ampla, e o soldado sem sono seria o precursor do trabalhador ou do consumidor sem sono”. Surgiriam, então, os mercados 24/7 (abreviação para 24 horas por dia, 7 dias por semana), o ser humano sendo tomado como cobaia para o perfeito funcionamento da engrenagem da mais-valia.

O autor denuncia: “sabe-se que os EEUU estão envolvidos há anos na prática de torturas, diretamente ou por meio de governos fantoches”. E vai mais além: “o Pentágono justifica cinicamente a privação de sono alegando que soldados da divisão de elite SEAL da Marinha eram obrigados a participar de missões simuladas nas quais passavam dois dias sem dormir”.

O primeiro capítulo do livro do Jonathan Crary é convincente. Cidadanizador por derradeiro. Só depende de nós o não acontecer. Para também pôr um basta nas decapitações puramente vingativas.

(Publicada em 06.10.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves