ESPIRITUALIDADE ENXERGANTE


O notável escritor luso José Saramago (1922-2010), merecido Prêmio Nobel, declarou, certa feita, à jornalista Ivana Jinkings que “no plano da mentalidade todos nós somos cristãos, vivemos dentro de uma civilização judaico-cristã que foi formada com um tipo de ética, uma rede ideológica que tem origem no cristianismo. Portanto, é perfeitamente natural que qualquer cidadão – seja ele comunista, socialista, liberal ou seja lá o que for -, em determinado momento da sua vida, venha a interessar-se por este aspecto da realidade.”

Entretanto, uma grande maioria ainda não percebeu o recado de Saramago: “Para mim, a fator Deus já não tem nada a ver com Deus. É usar a ideia do Supremo para coisas que não têm nada a ver com a religião”. E, por extensão, não entende o cada vez mais atual recado do monsenhor de Cuernavaca, Ivan Illich: “Nunca confundir salvação com igreja”. E termina por não enxergar as igrejas tipo picadeiro, onde sabidórios se abarrotam de doações financeiras, pouco se lixando para o sofrimento espiritual das pessoas ou apenas fingindo que se solidarizam com os mais necessitados, para engabelar incautos e desavisados. E sem qualquer noção do que seja espiritualidade, que era o ponto forte de Santo Inácio de Loiola (1491-1556), o fundador da Companhia de Jesus, que, tendo a perna estraçalhada por uma bala de canhão, quando soldado, em 1521, passou muitos meses inválido, tornando-se ávido leitor e entusiasta da Vita Christi, de Rodolfo da Saxônia, a partir do qual principiou a esboçar seus primeiros Exercícios Espirituais.

Para quem deseja se familiarizar-se introdutoriamente na espiritualidade inaciana, um bom começo é o livro A sabedoria dos jesuítas para (quase) tudo, Sextante, 2012, de James Martin, padre jesuíta editor de cultura da revista América, também graduado em administração pela Wharton School of Business. Que explica a filosofia inaciana de forma muito sedutora, a partir do próprio Inácio de Loyola, com seus exemplos surpreendentes, histórias bem humoradas e casos pra lá de curiosos, demonstrando que a espiritualidade se encontra profundamente inserida em nossas atividades cotidianas, sendo perfeitamente possível chegar a Deus através dos nossos relacionamentos pessoais, nossas atividades profissionais, nossos desafios diários.

Sou ex-aluno jesuíta, graduação (UNICAP) e pós-graduação (PUC-RJ). E percebi aos poucos, nos diversos anos de estudo, que o “modo de conduta” de Inácio de Loyola nos possibilita ser capazes de tomar decisões consistentes, favorecendo uma sadia convivialidade com gregos e troianos de todos os gêneros, naipes étnicos, ideológicos e partidários, sabendo endurecer sem perder a ternura jamais.

A leitura atenta dos seis caminhos para Deus idealizados por Inácio de Loyola – da crença, da independência, da descrença, do retorno, da exploração e o da confusão -, enseja um caminhar cidadão enxergante, sem fricotagens histéricas, nem baboseiras litúrgicas, percebendo a presença de Deus em nossos atos cotidianos, sempre se pautando no balizamento de Pierre Favre, um dos primeiros jesuítas da Companhia de Jesus: “Busque graça nas coisas mínimas, e você achará graça também para conquistar, acreditar e ter esperanças nas coisas máximas”.

Vivemos numa sociedae onde o consumo prevalece sobre todas as demais coisas, numa perspectiva radicalmente individualista. E foi um teólogo comportamental jesuíta, John Kavanaugh, quem denunciou a cultura consumista contemporânea: “Em conversa com pais e seus filhos, sobre o problema do estresse e da fragmentação da família, não identifico nenhuma força tão persuasiva, tão poderosa e tão sedutora quanto a ideologia consumista do capitalismo e sua fascinação pelo acúmulo desmedido e a competição exaustiva em todos os níveis da vida”.

Tem gente que se incomoda profundamente quando não está atrelado às tetas do poder, dando uma espiadinha diária no chefe superior, mesclando, por não saber diferenciar, por incompetência, obediência cega e bajulismo irrestrito. E que não percebe o quanto está contribuindo para a ampliação da intolerância, da indiferença e do cinismo.

Uma advertência final: Inácio de Loyola gostava de dizer em muitas oportunidades: “É perigoso fazer todo mundo seguir a mesma estrada e é pior ainda avaliar os outros com base em si mesmo”. Uma serena tapa com luva de pelica naqueles que se imaginam os privilegiados da Corte Celestial, sempre desejando segurar as mãos do Criador, tal e qual aquele que desprezou o pobre coitado que se encontrava à porta do Templo, suplicando: “Senhor, dizei uma só palavra e serei salvo!”

PS. Para o meu amigo querido Paulo Henrique Maciel, ateus dos bons, caráter ímpar, cultura invejável, bem mais filho de Deus que eu, que sempre seguiu o sonho de Saramago, o de fundar a Internacional da Bondade. E que nunca ignorou, como ele, que “as verdades únicas não existem: as verdades são múltiplas, só a mentira é global”.

(Publicada em 11.03.2013, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves