ENTRE LEÕES E CHACAIS
As conservadoras raposas do Vaticano estão se revelando espetacularmente chacais nas últimas semanas, tentando amortecer os noticiários sobre os últimos escândalos de pedofilia praticados por alguns dos seus padres tarados, mediante ofuscamento bem planejado da excelente receptividade causada pelo livro do teólogo espanhol Juan António Pagola JESUS – UMA ABORDAGEM HISTÓRICA, editado em várias línguas, inclusive na portuguesa, através da Gráfica de Coimbra. Um texto aplaudido pelo teólogo brasileiro Faustino Teixeira, que nele proporcionou uma renovação do amor sentido pelo Homão da Galileia, esse “maravilhoso buscador de Deus”, segundo testemunho dele próprio.
Para os que estão desligados das ardilosidades dos reacionários encrustados nos corredores, armários, gavetas e outros recantos pouco iluminados do Vaticano, é bom revelar que a perseguição ao livro do teólogo Juan António Pagola iniciou-se há mais de três anos. Acentuando-se nas últimas semanas, quando os escândalos de pedofilia se ampliaram na mídia internacional, envolvendo até um irmão também padre de Bento XVI, que confessou que dava umas bofetadas nos meninos integrantes de coral por ele dirigido. Até a editora PCC solicitou às livrarias diocesanas e religiosas da Espanha a devolução dos exemplares da nona edição do livro (grifo nosso), numa prova inconteste da raposice programada, quando já tinham sido vendidos mais de 60.000 exemplares.
Segundo informações veiculadas pelos informativos independentes espanhóis, a PCC recebeu fortes pressões dos poderes eclesiásticos oficiais para retirar a obra de circulação, que já estava distribuída na Argentina e traduzida para o catalão (Ed. Claret) e para o basco (Ed. Idatz). As ameaças chegavam até a admitir uma intervenção direta do Vaticano. Em outras palavras: posturas século XXI da peçonhenta Santa Inquisição, idênticas às sofridas pelo teólogo Leonardo Boff, quando da publicação do seu muito lido livro Igreja, Carisma e Poder. E mais Hans Küng, Karl Rhaner, Jon Sobrino e tantos outros mentalmente desacocorados.
Observemos a orquestração dos chacais. O primeiro ataque sério veio das mãos do bispo de Tarazona, Demetrio Fernández, que acusou Pagola de “herege” e “ariano” e de apresentar um Jesus “que não é o da Igreja”. Seguiu-se um duro ditame de José Rico García Pavés, diretor do secretariado da Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé, que acusou o teólogo basco de apresentar um Jesus “irreconhecível”.
Dom Uriarte, bispo do teólogo perseguido, se reuniu com ele para lhe convencer da necessidade de alguns “retoques” na obra. O autor aceitou e apresentou um novo manuscrito. O texto foi submetido pelo então bispo de San Sebastián a uma comissão qualificada, integrada por dois teólogos reconhecidos e um bispo-teólogo que elaboraram uma perícia. Com os argumentos elaborados, Dom Uriarte fez seu o “Nihil obstat” (Nada a objetar) e emitiu um decreto pessoal, um “Imprimatur”, com o qual abençoava a obra.
Logicamente, o aval de Uriarte não agradou os chacais conservadores atocaiados em Roma. Mesmo assim, em Madri, na Conferência Episcopal, Dom Uriarte, informado das arapucas que estavam sendo preparadas em alguns pés-de-muro episcopais, desassombradamente adiantou-se e comunicou seu “Nihil obstat” no dia 18 de junho de 2008. Dom Uriarte definiu o livro do teólogo Juan António Pagola como uma “tentativa séria de aproximação histórica, honesta, documentada e bem feita”. Apesar de assegurar que seu conteúdo poderia causar “perplexidade em alguns”, assegurou que muitos verão os “efeitos positivos” do livro.
Recentemente, um outro teólogo espanhol, José Maria Castillho, considerado um dos gigantes da Teologia no mundo, lançou um texto chamado La Humanización de Dios. Para se sentir mais livre, solicitou desligamento da Companhia de Jesus. É classificado como um dos perseguidos pela famigerada Congregação para a Doutrina da Fé, já tendo colecionado várias advertências, continuando firme enfrentando os inquisidores. Em entrevista ao site espanhol Religión Digital, em dezembro passado, ele explicitou opiniões corajosas. Algumas delas:
“Não esqueçamos que os quatro primeiros Concílios da Igreja não foram convocados pelos Papas, mas pelos imperadores. Foram pagos, aprovados e promulgados por eles. E que até Teodósio I (final do século IV) utilizavam o título de Sumo Pontífice”.
“Os imperadores tiveram uma influência determinante na formulação daqueles Concílios. A ponto de que um dos grandes temas que se estuda sobre aqueles tempos é o cesaropapismo, que foi o fato da intervenção dos imperadores na teologia, impondo seus critérios e seus pontos de vista. Eu, no livro, dou o exemplo muito eloquente e atual: imaginemos que Obama convoque um concílio ecumênico na Casa Branca. Que reúna ali todos os bispos do mundo, custeie sua estadia, aprove os documentos e os promulgue. Muita gente ficaria com reservas”.
“Não se pode transpor o século IV ou V para o século XXI, porque seria uma injustiça histórica e uma ingenuidade pedagógica”.
“A Igreja segue tendo um monofisismo eterno oculto, dissimulado. Há muitas pessoas que estão convencidas de que Jesus Cristo é Deus. Santo Tomás, na Suma Teológica, se pergunta se Jesus fazia as necessidades humanas”.
“A humanização segue trazendo problemas. Juan António Pagola é um exemplo atual claro disso. Há uma resistência não confessada, mas muito forte. Porque o humano é a coisa mais básica da nossa condição, anterior ao cultural, ao religioso, etc. E Deus se identifica com isso. Deus se encontra sobretudo no laico, no comum a todos os seres humanos. Estas foram as grandes preocupações de Jesus. E para isso apelava a Deus. Porque Jesus sabia muito bem que sem fé, sem profundas convicções, a condição humana não é capaz de nada. … Me parece que a originalidade do meu livro está em dizer que devemos buscar a Deus, sobretudo, no humano. E que o cristianismo existe para nos humanizarmos”.
“Os teólogos muitas vezes dão a impressão de que conhecem mais a Deus do que o homem. Prova disso é que se perguntam: ‘Jesus é Deus?’. Se analisam essa pergunta, te dás conta de que no fundo estão dizendo que sabem o que é Deus. E perguntam se isso se pode aplicar a Jesus. Eu perguntaria a quem faz essa pergunta: ‘Você sabe quem é Deus? O viu, o conhece?’”.
“Eu creio que São Francisco de Assis evangelizou mais na sua humildade e na sua simplicidade – ou a boa gente por aí perdida, padres, freiras, leigos… – que estes personagens que aparecem com essa pompa. Muitos ficam desconcertados e a outros causa mal-estar. Mesmo que haja grupos que sentem necessidade disso”.
“(Vaticano) já está perdendo influência por toda a Europa; em todas as partes do mundo, à medida que a cultura vai avançando. Por isso, a Igreja se agarra ao integrismo dogmático, à política, etc., pensando que com isso vai compensar as carências em outros âmbitos. Que são os decisivos. Decisivo é o Sermão da Montanha, que determina a convivência entre as pessoas. Por isso, não se transmite, não se contagia a opinião pública, o povo. E o pior, do meu ponto de vista, é que essa tendência está crescendo ultimamente. Vamos rumo a uma Igreja da pompa e da liturgia e nos afastamos dos pobres”.
“Quando era jesuíta, um bispo me falou com toda a confiança. Estava em uma diocese da Espanha e me contou como são controlados por Roma, mediante um monitum, uma advertência. E me contou o exemplo do cardeal de Barcelona, que morreu há alguns anos, a quem mandavam monitum após monitum por coisas muito estranhas. Até que um dia se cansou, tomou um avião, foi a Roma e perguntou: – O que está acontecendo aqui?”.
“Tive dificuldades para pensar com liberdade e dizer livremente o que pensava. E falei para mim mesmo: “O pouco tempo de vida que me resta, que não será muito, quero poder pensar e falar com liberdade, até onde me seja possível”.
“O que eu sinto é que há pessoas que podem se escandalizar. Que vão se irritar ou sentir mal lendo meus livros ou esta entrevista. Mas também penso que nos Evangelhos (Deus me livre de nem sequer querer assemelhar-me ao Senhor) Jesus escandalizou muita gente. E Monsenhor Romero, ou Dom Hélder Câmara, também escandalizaram muita gente. Lembro dessa frase tão conhecida: ‘Quando eu dou de comer aos pobres, me chamam de santo. Quando eu pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista!’ Quer dizer, se escandalizam. Mas eu creio que isto é inevitável”.
“Eu sempre digo uma coisa: Jesus foi extremamente tolerante. Mas foi intolerante com os intolerantes. Essa é a razão da dureza e da firmeza com que trata a escribas e fariseus, segundo os relatos evangélicos”.
“Uma das esperanças que tenho é que se vejam (os do Vaticano) cada dia mais angustiados economicamente. Porque a cruz vai colocar cada vez menos gente na casinha da declaração de renda, porque cada vez menos gente vai à Igreja e, portanto, as doações diminuem vertiginosamente. E se verão numa situação em que não lhes resta outro remédio – e é duro e desagradável dizê-lo – que rever muitas coisas”.
“Cristo não ordenou ninguém. Outro dia, no blog de Rebelión Digital, coloquei uma entrada sobre isso: a ordem não é bíblica nem evangélica, é uma instituição política do Império. Havia três ordens: a dos cavaleiros, dos senadores e da plebe. E isso foi tomado pelo clero no século III. Dizer que Jesus ordenou os apóstolos sacerdotes é um despropósito teológico e histórico. Portanto, por que não vão poder ordenar mulheres para sacerdotes? O Concílio diz que o povo cristão tem direito a que seja atendido com a pregação da Palavra e a administração dos sacramentos pela Hierarquia. Hoje, mais da metade das paróquias do mundo não tem pároco, porque não há sacerdotes suficientes. Acima do direito da Igreja de impor sacerdotes celibatários ou só homens, está o direito dos fiéis de serem atendidos. Porque a Comunidade está em primeiro lugar”.
Segundo ainda as fontes responsáveis, não há ordem expressa de retirar o livro do teólogo Juan António Pagola das prateleiras das livrarias. Os chacais não gostam de dar ordens por escrito, preferem ameaçar as ovelhas medrosas. E há uma razão mais que teológica perpassando as ameaças veladas e explícitas: o papa Bento XVI lançará ainda este ano o segundo volume do seu livro Jesus de Nazaré. E, vaidade das vaidades, pretende ver a estrada vitoriosa da vendagem sem qualquer concorrência…
Entre os leões bravios e evangelizadores século XXI, comprometidos com os socialmente desassistidos, e os chacais pomposos, cinicamente purpurados e candidamente cúpidos, eu fico com o primeiro grupo, entendendo que o Homão da Galileia, nosso Irmão Libertador, era infinitalmente abençoado por Deus, aqui integralmente nascido como homem, para dar exemplo de um viver em comunhão, numa convivialidade que dispensava ordens, igrejas, purpurados e ostentações. E que grandiosamente percebia a ascensão de todos, homens e mulheres, libertos das peias do mando religioso, caminhando e cantando e seguindo a canção, para eternizar-se prenhe de fé radical.
Recife, março 2010
Fernando Antônio Gonçalves