ENSINAMENTOS DE BISPO SEMPRE AMADO


Na semana passada, a querida amiga Lucinha Moreira me enviou um e-mail convidando-me para assistir uma fala de alguém de fora sobre Dom Hélder Câmara, o sempre muito amado ex-arcebispo metropolitano de Olinda e Recife. Na ocasião do recebimento eletrônico, estava lendo, com muita atenção e inúmeras anotações, o livro Deus – sua história na epopeia humana, de Frédéric Lenoir, diretor do Monde des religions, um especialista que há mais de trinta anos investiga a figura de Deus na história da humanidade, sempre buscando respostas para algumas perplexidades: Se Deus existe, porque não o vemos?; Quando os deuses apareceram na história da humanidade?; Os judeus são os inventores do Deus único?; Por que a figura de Deus é quase sempre masculina e misógina?; Deus é uma força, uma pessoa, uma energia, um princípio criador?; Existe ateísmo fora da cultura ocidental?

Não podendo atender ao convite da Lucinha, uma helderista de quatro costados, revi um arquivo que conservo, sempre atualizando, algumas informações sobre o homem que me converteu num transecumênico, a partir de uma das suas inesquecíveis lições: “Não temos o monopólio da verdade. Não temos o monopólio do Espírito Santo. Devemos ter toda a humildade diante daqueles que, mesmo não tendo jamais ouvido o nome de Cristo, talvez possam ser mais cristãos que nós mesmos!”

O Dom proclamava sempre ser um tremendo equívoco apontar como causa do subdesenvolvimento a explosão demográfica. E não titubeava: “No dia em que chegarmos a controlar o egoísmo, a proceder a uma revisão profunda das estruturas da injustiça, isso nos permitirá ver que Deus não se enganou quando promoveu a criação!” E contava um fato acontecido com ele mesmo acontecido:

“Lembro-me de certa vez que me convidaram para a inauguração duma grande empresa. Era um dia de intenso calor, mas os escritórios dos diretores tinham o conforto dos aparelhos de ar-condicionado. Os garçons passavam travessas e mais travessas com garrafas de uísque. Uma, duas, muitas vezes. Eu tomava apenas refrigerantes – não por virtude excessiva, pois até gosto de um pouco de vinho, o que não me causa qualquer problema de ordem moral – porque o álcool parece não gostar de mim… Em dado momento, um dos convidados se aproxima e, grosseiramente, me diz: ‘Ora, ora, Dom Hélder! Como é que vai a sua demagogia? O senhor ainda tem coragem de dizer que vivemos cercados de fome e miséria aqui em Recife?’ Outras pessoas juntaram-se a nós, encorajadas por aquela provocação e querendo prossegui-la. Eu respondi a todos, em alto e bom som: ‘Vejam só! Eu estava tranquilo no meu canto, mas vocês preferiram provocar-me … Pois eu lhes garanto que se sairmos todos juntos nos belos carros que vocês têm, em poucos minutos ei os mergulharei num ambiente da mais terrível fome e miséria…’”

“Para surpresa minha , aceitaram o desafio. Em não mais do que dez minutos chegamos a uma área, um desses locais onde os serviços públicos despejam, e depois incineram, o lixo da cidade. Eu conhecia bem o local… chamei um conhecido, que é funcionário da Prefeitura e por ali trabalha. Ele tem, a propósito, o apelido de Doutor Lixeira… Longa experiência lhe ensinou a ver, no meio daquele lixo todo, o que ainda pode ser aproveitado como alimento. É ele quem estabelece a classificação: comida de primeira classe, que os funcionários da limpeza pública reservam para si mesmos; comida de segunda classe, boa ainda para as pessoas que nada têm do que viver e se alojam por ali, disputando o refugo com os urubus que ciscam como galinhas pretas; comida de terceira classe, que se coleta e guarda para vendê-la depois nas tendinhas de quarta ou quinta classe, onde qualquer coisa serve para encher a barriga daqueles que vivem encharcados de álcool…”

“O Doutor Lixeira explicou tudo isso, muito direitinho, às dezenas de chefes de empresa que me haviam acompanhado até ali. Tive a impressão de que marcara profundamente o meu ponto, ensinando-lhes uma dura lição… Mas qual! No dia seguinte, um deles me chama ao telefone, e diz: ‘Dom Hélder, que sujeito formidável aquele Doutor Lixeira! Ele tem muita iniciativa! Bem que poderíamos emprega-lo…”.

Continuei a leitura das reflexões do Frédéric Lenoir, imaginando a concordância do sempre amado Hélder Câmara, para uma das afirmativas contidas no texto: “Um dos principais obstáculos ao progresso da humanidade e do conhecimento não é nem a fé nem a ausência de fé, como durante muito tempo se pensou nos séculos anteriores: é a certeza dogmática, de qualquer natureza que seja. Porque ela acaba engendrando – de modo mais ou menos intenso ou explícito – a rejeição do outro, a intolerância, o fanatismo, o obscurantismo. … Quaisquer que sejam nossas crenças, o importante não seria cultivar e promover esses valores universais que nos unem e dos quais depende o futuro de toda a humanidade: a justiça, a liberdade, o amor?”

Vale a pena ler o trabalho do Lenoir. Um texto desabestalhador por derradeiro, sempre balizado pelo amado Dom: “os apóstolos de hoje não são apenas os bispos, os padres, os religiosos e religiosas. Qualquer leigo pode sê-lo também”.

(Publicada em 26.08.2013, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)

Fernando Antônio Gonçalves