ENIGMA DA RELIGIÃO


Se me perguntarem sobre personalidades que contribuíram para minha caminhada de cristão transecumênico, apontaria sem vacilação, após o lugar primeiro ser ocupado pelo meu pai e o segundo preenchido pelo amado Dom Hélder Câmara, ex-arcebispo metropolitano de Olinda e Recife, o teólogo Rubem Alves (1933-2014), também psicanalista, educador e escritor, considerado um dos mais destacados pedagogos brasileiros de todos os tempos. Sendo ainda um dos fundadores da Teologia da Libertação, ele foi intelectual polivalente nos debates sociais do país, também professor emérito da Universidade de Campinas, São Paulo.

Rubem Alves, de formação eclética, sabia excelentemente bem transitar pelas áreas de teologia, psicanálise, sociologia, filosofia e educação. Aposentado da vida universitária, foi proprietário de um restaurante, posto que a culinária era uma das suas paixões, tendo sido tema de alguns dos seus livros. Em Campinas, mantinha um grupo chamado Canoeiros, que semanalmente se encontrava para leitura de poesias.

“Ensinar” é descrito por Alves como um ato de alegria, um ofício que deve ser exercido com paixão e arte. É como a vida de um palhaço que entra no picadeiro todos os dias com a missão renovada de divertir. Ensinar é fazer aquele momento único e especial. Ridendo dicere severum: rindo, dizer coisas sérias. Mostrando que esta, na verdade, é a forma mais eficaz e verdadeira de transmitir conhecimento. Agindo como um mago e não como um mágico. Não como alguém que ilude e sim como um ser que acredita e faz crer, que deve fazer acontecer. Em alguns de seus textos, cita passagens da Escrituras Sagradas, valendo-se de memoráveis e inesquecíveis metáforas.

Sua postura liberal logo lhe trouxe graves problemas em seu relacionamento com o protestantismo histórico, especificamente o presbiteriano. Foi questionado desde cedo por suas ideias e teve de abandonar o pastorado, tendo antes renegado suas convicções doutrinárias ortodoxas. Foi dessa experiência que surgiu o livro Protestantismo e Repressão, que busca elucidar os labirintos do cotidiano histórico deste movimento religioso. Foi proibido de falar nos púlpitos da Igreja Presbiteriana do Brasil, o que não o impediu de ser convidado para pregar na Igreja de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 31 de outubro de 2003, por ocasião das comemorações da Reforma Protestante.

Um dos livros do Rubem Alves que mais me seduziram, fortalecendo minha fé no Homão da Galileia, foi O Enigma da Religião, Campinas, Papirus, 2007 (6ª. edição). Sua densa mensagem é direta e, por vezes, romântica, explorando a essência do homem e a alma do ser humano. É algo como um contraponto à visão atual do homo globalizadus que busca satisfazer desejos, muitas vezes além de suas reais necessidades. Na primeira orelha do livro, Alves relembra o teólogo Reinhold Niebuhr, quando proclama que o riso é o início da oração. E vai mais além: “Só Deus tem o direito de se levar a sério. Quem compreende isso tem a liberdade não só de rir dos outros que se levam a sério, como também rir de si mesmo. E quem é capaz de rir de si mesmo começou a andar no caminho da bondade e da mansidão. Os sérios estão condenados a ser inquisidores”.

Algumas das principais conclusões expostas no livro do Alves, acima citado, contribuiram profundamente para um meu recaminhar cristão menos bolorento, menos fantasioso, menos emoção e mais razão, sempre desconstruindo para reconstruir, sem jamais abandonar o amor intenso nutrido pelo Filho do Homem, Jesus de Nazaré, e também pela sua Mãe. Eis uma pequena amostra do Rubem Alves:

“A comunidade da liberdade e do amor, a Igreja por que aspirávamos, não se encontrava dentro dos limites institucionais da organização eclesiástica. Não se pode costurar remendo novo em pano velho e nem colocar vinho novo em oldres velhos. Isto é impossível e mais do que isto: tolice”.
“Quanto mais a Igreja se volta para si mesma, ainda que a preocupação deste voltar-se seja encontrar uma unidade perdida, mais a Igreja se atola em suas próprias contradições”.
“Deus se tornou uma arma ideológica para a preservação do poder, para justificar as coisas, tais como elas eram, para executar os dissidentes”
“Somente lutamos com um problema quando temos a consciência de que temos poder para destrinchá-lo e resolvê-lo”.
“Explosões carismáticas se domesticam em rotinas burocráticas, profetas se metamorfoseiam em sacerdotes, revolucionários, uma vez no poder, se tornam conservadores”.

Através da leitura de O Enigma da Religião, do Rubem Alves, um dia me voltei para ser leitor de um teólogo ainda muito pouco estudado: Paul Tillich (1886-1965). Seu livro Teologia Sistemática, São Leopoldo, Sinodal, 2005, 870p., é uma das principais obras teológicas da história do cristianismo. E que caracteriza um sistema teológico como um sistema que “deve satisfazer duas necessidades básicas: a afirmação da verdade da mensagem cristã e a interpretação desta verdade para cada nova geração”. No seu livro notável, ele também proclamou: “O fundamentalismo deixa de entrar em contato com a situação presente, não porque fale desde além de qualquer situação, mas porque fala desde uma situação do passado … O fundamentalismo possui traços demoníacos”.

Rubem Alves eternizou-se em 19 de jullho de 2014, por falência múltipla dos órgãos. Seu corpo foi velado na Câmara Municipal de Campinas, São Paulo, onde o escritor mineiro residia. Como pediu, seu corpo foi cremado em Guarulhos, as cinzas sendo espalhadas sob um ipê amarelo.

(Publicado em 02.11.2015, no site do Jornal da Besta Fubana – www.luizberto.com/sempreamatutar)
Fernando Antônio Gonçalves