DOM HÉLDER CÂMARA, JUSTIÇA E PAZ


Certa feita, quando as sombras da mediocridade eclesiástica imposta por Roma já tentavam desatinadamente se espraiar por Recife e Olinda, o testemunho do ex-arcebispo metropolitano de Olinda e Recife sobre a Comissão de Justiça e Paz, por ele criada em 1977, tornou-se avaliação definitiva: “trata-se de instituição firme, bem composta e que saberá se defender”. As palavras do Dom, um nordestino que sabia das coisas, profeticamente alertava para o desmonte que se avizinhava, prenhe de muita hipocrisia, como se a pastoral do Dom Hélder Câmara fosse encharcada de maus costumes e recheada de subversivos, como se o Cristo também não tivesse sido considerado como tal, anunciador que foi da Boa Nova.
Uma das características mais marcantes da atuação da Comissão de Justiça e Paz, na pastoral Hélder Câmara, foi a sua total independência, sempre baseada nos ensinamentos do Senhor Jesus, sintetizados no evangelho de São João, onde se declara que a Verdade liberta. Uma independência que parecia ser respeitada nos primeiros meses de comando da autoridade substituta do Dom, quando, em nota oficial distribuída à imprensa em junho de 1986, proclamava ser relevante o trabalho realizado pela CJP, “composta de leigos engajados, seus estudos, análises e denúncias têm contribuído para que muitas pessoas possam situar-se mais eficazmente na caminhada do Povo de Deus”. Um testemunho debilmente tornado sem efeito, quando a mesma CJP, composta dos mesmos leigos classificados anteriormente como engajados, criticou a Arquidiocese por ela ter acionado a Polícia contra 20 moradores do Engenho Pitanga, em 1989. Proclamava a CJP que “o senhor Arcebispo deveria sentir-se feliz e pastoralmente gratificado porque, ao procurá-lo sem prévia audiência e sem formalidades burocráticas, o povo de Pitanga o via menos como bispo que manda e mais como pastor que ouve suas ovelhas”. Um posicionamento da CJP que resultou num decreto do metropolita, tentando amordaçá-la, no que redundou em mais um posicionamento do Dom, afirmando que a CJP sabia se defender, não precisando de quem indicasse o que ela deveria fazer.
Na época, já na qualidade de ex-presidente da Comissão de Justiça e Paz, embora continuando a ela integrado, divulguei documento sobre a tentativa de intimidação da arquidiocese, já infestada de tridentinos e alguns familiares. Um documento feito com base nos ensinamentos transmitidos pelo próprio Dom a toda CJP, sem burocracias nem posturas de recalque, sem qualquer subserviência das partes dialogantes. Alguns trechos do documento exemplificam os ensinamentos e as orientações recebidas:
“Não somos donos da verdade, mas o direito de crítica nos foi ressaltado por Pio XII, há quase quarenta anos. E ratificado pela Lumen Gentium (37) e pelo próprio Direito Canônico (212). A crítica sem exacerbações, mas em crescente liberdade, sem os ‘secretismos’ nem as ‘imposições’. Ajudando a Igreja a ser mais Igreja no Terceiro Mundo, sem os eurocentrismos colonizadores, sem controles prepotentes e sem as desconfianças patológicas dos imaturos, que fingem desconhecer a lição imorredoura do Arcebispo Emérito Dom Hélder Câmara: ‘Das barreiras a romper, a que mais custa e a que mais importa é, sem dúvida, a da mediocridade’”. …. “Somos também Igreja e temos plena consciência do nosso papel. Não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos (At 4,20), pois todo um povo pode ser destruído se lhe falta conhecimento (Os 4,6). E devemos saber questionar, ainda que tomando para nós a perplexidade do poeta Carlos Drummond de Andrade: ‘Como vencer o oceano, se é livre a navegação mas proibido fazer barcos?’” … “Continuar a converter é preciso e mais que oportuno. Converter corações, mentes e estruturas integra nosso dever de cristãos militantes, sempre sabendo resguardar-se dos escribas e fariseus, dos que ‘gostam de circular com togas, dos que devoram as casas das viúvas e simulam rezar longamente’ (Mc 12, 38-40)”. … “As ondas do passado já foram bem maiores e nós, cristãos, fomos capazes de suplantá-las. E superamos os obstáculos sob a inspiração do Divino Espírito Santo, que sempre intervém com toda a força do seu braço, ‘dispensando os orgulhosos, precipitando os poderosos de seus tronos, exaltando os humildes, cobrindo de bens os famintos e despedindo os ricos de mãos vazias’ (lc 1, 51-55”.
O modelo de Igreja que a Comissão de Justiça e Paz, em comunhão com Dom Hélder Câmara e sem perder a criticidade jamais, preconizava e defendia sem destemor, se encontrava solidamente caracterizado nos documentos do Concílio Vaticano II: uma Igreja não autoritária, mas colegiada; uma Igreja não inquisitorial, mas dialogal; uma Igreja não elitista, mas popular; uma Igreja não moralista, mas que tenha uma vida moral em decorrência de seus compromissos com a maioria da população; uma Igreja não vinculada a minorias privilegiadas, mas essencialmente voltada para um serviço desinteressado e libertador dos oprimidos.
Sou suspeito, por amor nutrido a quem muito contribuiu para a minha cidadanização, para falar dos trabalhos do arcebispo metropolitano de Olinda e Recife com a Comissão de Justiça e Paz. Seu ideário, entretanto, repleto de notáveis antecipações e proféticas advertências, pulula no meu interior de nordestinado. Através da CJP, compreendi com melhor consciência cidadã, porque ele encarecia travar o bom combate diante das expressividades comodistas e politizações impotentes. Eliminando-se, pela solidariedade dos consequentes, os sinais visíveis de um novo barbarismo, seqüela das ampliações econômico-sociais entre os que têm e os que nada possuem, estes em contínua expansão. Na certeza de que os objetivos serão alcançados se a estratégia contiver uma maciça dose de autenticidade , uma mancheia de postura ética , tudo sendo estabelecido com as cartas na mesa. E com uma vontade danada de largar posicionamentos antigos, para abarcar uma contemporaneidade muito arretada para todos .
Na Comissão de Justiça e Paz, jamais nos olvidamos de uma advertência feita pelo amado arcebispo: “O Cristianismo que difundimos no Continente, atribuindo tudo a Deus e quase não apelando para a iniciativa e a responsabilidade do homem chamado, pelo Criador, a dominar a natureza, a completar a Criação, a conduzir a História, alimentou nas Massas latino-americanas um sentimento passivo, fatalista e mágico”.
Recentemente, tomei conhecimento de alguns poemas do eternizado Dorivaldo Gondim, pai da Djanira Oiticica Gondim, arquiteta especializada em desenvolvimento urbano, mãezona do Thiago, vestibulando 2002 a todo vapor, e amiga minha de seriedade e muito papo. Ao manusear, na sua casa, uma pasta-baú, deparei-me com um poema do Dorivaldo que homenageava o Dom, quando do lançamento da primeira edição de O Deserto é Fértil, editada pela Civilização Brasileira, do Ênio Silveira, que teimava em resistir às impudências de um regime militar pouco afeito aos debates democráticos.
Intitulado Bilhete a Dom Hélder, eis o poema-homenagem do Dorivaldo Gondim:

As Verdades aqui expostas Dom Hélder, amigo
São as mesmas que discretamente andam comigo
Verdades que não se dizem, mas que se sentem
E que perduram a toda hora em nossa mente.

As explosões da cólera e da guerra
Que fendem os céus e ameaçam a terra
As convulsões em que se agitam a humanidade
São “Desertos de amor e de bondade”.

Teus versos, Hélder, são centelhas, raios de luz
Dos verdadeiros ensinamentos de Jesus
Centelhas estas, que nas horas calmas
Caem como pingos divinos em nossas almas.

Nas tuas horas de segregação e sofrimento
Ao peso da incompreensão e do tormento
Crê, venerando e velho amigo
Não estás só, muitas almas estão contigo.

Escrito em 1976, o poema do Dorivaldo Gondim me fez reler, pela quarta vez, o livro do Dom acima citado. E verifiquei a atualização das suas lições, daqueles inesquecíveis ensinamentos endereçados às minorias abraâmicas, incentivando a quebra das tranquilidades e dos comodismos. Relendo que “o escândalo do século é a marginalização que afasta dos benefícios e serviços, da criatividade e das decisões”, recordei-me de posturas assumidas pela CJP através de Antônio Montenegro, Pedro Eurico, Luis Tenderini, Leda Alves, Roberto Franca, Salvador Soler, Lucinha Moreira, Lauro Oliveira e tantos outros, na então evangelicamente coerente Comissão Justiça e Paz.
O Dorivaldo percebeu a lição imorredoura do Dom: “Quem não confia na própria força; quem se protege contra toda e qualquer amargura; quem se mantém humilde; quem se sabe nas mãos de Deus; quem não deseja senão participar na construção de um mundo mais justo e mais fraterno, não desanima, não perde a esperança. E sente, invisível, a sombra protetora do Pai!”
A Comissão de Justiça e Paz, na pastoral Hélder Câmara, cumpriu o seu papel e combateu o bom combate, respaldada na inesquecível lição deixada pelo próprio Dom:

Que importa que ao chegar eu nem pareça pássaro.
Que importa que ao chegar eu venha me arrebentando, Caindo aos pedaços,
Sem aprumo e sem beleza.
Fundamental é cumprir a missão
E cumpri-la até o fim”.

Fernando Antônio Gonçalves