DESASSOMBROS DE GÊNIO


Concluídas as solenidades protocolares da visita do presidente Obama, líder atento às reivindicações da Democracia Brasileira, é chegada a hora de voltar a ampliar iniciativas e sonhos, favorecendo o ingresso do país no rol dos possuidores de reconhecida liderança mundial. Uma aspiração acalentada nas últimas décadas, com andanças e retardanças, com férrea disposição dos progressistas e cavilosas manobras dos que nada desejam alterar, para favorecer um crescente alheamento populacional, principalmente dos segmentos mais sacrificados.

A estruturação da Cidadania Brasileira requer uma sistemática ampliação da “enxergância” de todos os seus segmentos sociais, desabestalhando cada vez mais os desligados e os sem energia cívica. Para tanto, devem ser estimulados debates desbravadores e não-dogmáticos, favorecendo o acabrunhamento de todos os “ismos”, animando novos modos de pensar, agir e criar, abjuradas as torres de marfim. Tudo se inserindo nas circunstâncias de uma realidade século 21 ainda muito pouco luzidia para os mais jovens, que rejeitam o velho apenas por ser velho, facilmente assimilando as novidades merdívoras apenas porque são novas, sem perceberem o questionamento de Ortega y Gasset, notável pensador espanhol: “Como podem as rãs falarem de charco, quando nunca saíram do charco?”

Para os universitário dos diferenciados quilates, e os que latem tão somente, recomendaria a leitura sem demora de uma coleção de pensamentos de um genial intelectual português, também Prêmio Nobel de Literatura 1998, recentemente tornado eternidade. José de Sousa Saramago, José Saramago, autor dedicado exclusivamente à literatura, ateu e comunista, em tempo algum mero bode embarcado, que nunca escondeu seu pensar, posto que “as pessoas têm a necessidade de que se fale com elas com honestidade”. E que receberia, em 2001, o reconhecimento mundial de Harold Bloom: “Saramago é extraordinário, quase um Shakespeare entre os romancistas. Não há nenhum ficcionista vivo nos Estados Unidos, na América do Sul ou na Europa que tenha a sua versatilidade. Dir-se-ia tão divertido quanto pungente. Sei que é um marxista, mas não escreve como um comissário e opõe-se aos impostores da Igreja católica. O seu trabalho ultrapassa tudo isso.”

Para se ter uma ideia abrangente do pensar saramaguiano, não se faz mister ler seus extraordinários textos, que agradam sobremaneira àqueles que sabem ler sentindo-se engajado nas lutas por um mundo mais digno e humano, desalienado, sempre a denunciarem “o esvaziamento cerimonial da democracia”. A editora Companhia das Letras lançou, há algumas semanas, As Palavras de Saramago, uma primorosa coletânea do ensaísta e também escritor Fernando Gomez Aguilera, que publicou em 2007, em Lisboa, a biografia José Saramago: a consistência dos sonhos, posteriormente lançada na Espanha em 2010, em versão ampliada.

Através dessa seleção de pensamentos do escritor luso, assimila-se didaticamente o modo como ele “afiou seu bisturi, iluminado por uma pertinaz consciência insatisfeira instalada na interrogação permanente, numa confessada desconfiança e num pessimismo voltaireano que lançam um olhar desgostoso, irônico e melancólico sobre o real”.

Atendendo solicitação de Moniquinha Vieira Lopez, amizade intensa de algumas décadas, nunca deslustrada embora de endereço não mais conhecido, transcrevo abaixo uma pequena amostra do pesquisado pelo Fernando Gomes Aguilera, para favorecer o ampliar da curiosidade daqueles que, sempre em continuado processo de cidadanização, desejam ampliar sua cidadania planetária, conscientes de que nem o Homão da Galileia conseguiu conquistar todos do seu derredor. Ei-la, para aguçar nos leitores um quero-mais sempre libertador:
– “Os pessimistas são pessoas insatisfeitas com o mundo. Em princípio, seriam as únicas interessadas em alterar a rotina, uma vez que, para os otimistas, é razoável como está. Mas, ultimamente, gosto de dizer outra coisa: eu não sou pessimista, o mundo é que é péssimo. Com isto transfiro a culpa para a realidade“.
– “Tenho umas contas a acertar com Deus, porque há coisas que não lhe perdôo, se supostamente ele existir. Não suporto a maldade e a hipocrisia que cresceram à sombra não só do cristianismo, mas das religiões em geral, que nunca serviram para unir os homens”.
– “Não faço força nenhuma para ser cristão, mas, ao contrário de outras pessoas, não digo que a marca do cristianismo desapareceu do meu cérebro. Não omito minha formação, como prova O Evangelho segundo Jesus Cristo. Nele está presente o cristianismo na sua expressão católica. Posso estar fora da Igreja, mas não do mundo que a Igreja criou”.
– “Auschwitz não está fechado, está aberto, e suas chaminés continuam soltando a fumaça do crime que se comete a cada dia contra os mais frágeis. E eu não quero ser cúmplice, com a comodidade do meu silêncio, de nenhuma fogueira”.
– “Nas sociedades modernas, que chamam a si mesma de democráticas, o grau de manipulação das consciências atingiu um patamar intolerável. Isso gera um sistema que só é democrático na forma”.
– “O sindicalismo está domesticado, e essa foi a grande operação do sistema capitalista: a domesticação. E ao mesmo tempo nos dizem que somos livres – isso é o mais cruel”.
– “Provavelmente não sou um romancista: provavelmente eu sou um ensaísta que precisa escrever romances porque não sabe escrever ensaios”.
– “O único valor que considero revolucionário é a bondade, que é a única coisa que conta”.

José Saramago foi, no meu modo nordestino de ver as coisas do mundo, um excepcional cutucador, “que fala da sua família e do seu laicismo, da sua concepção da felicidade como harmonia, da importância que concede à bondade, do seu materialismo, da doença ou da sua inclinação a se interrogar sobre tudo que o rodeia”. E que se utilizou da escrita para, sem messianismo nem dogmatismos cavilosos, proclamar a necessidade de se ter ampliar a convivialidade neste mundão de Deus.

PS. Já quase entre nós Fernando Pessoa – Quase uma autobiografia, do pernambucaníssimo advogado e escritor José Paulo Cavalcanti Filho, também proprietário de um acervo precioso sobre o poeta luso. E que declara sem pestanejar na reportagem estupenda do jornalista Schneider Carpeggiani, Jornal do Commercio, inclusive com fotos que fazem relembrar Orson Welles e Winston Churchill: “Esse é o livro que eu sempre quis ler sobre Pessoa e que até agora não existia”.

(Publicada em 21/03/2011, no Portal da Revista ALGOMAIS, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves