DESAFIOS DE FRANCISCO


A surpresa foi geral, confirmando o famoso provérbio romano “quem entra papa em conclave sai cardeal”. A eleição de um papa jesuíta e latinoamericano deixou “entendidos” analistas com cara de tacho, aturdidos, as linhas até então escritas tornando-se classificadas como prognósticos que não apreendiam quase nada sobre o que aconteceria na Capela Sistina, depois de cerradas as portas para o início do conclave.

A revista Piauí, por exemplo, uma leitura para mim obrigatória mensal, no seu número 78, março 2013, trouxe um excelente texto de Marco Politi, embora em momento algum citasse ele o nome do cardeal argentino eleito, o papa Francisco. Mas a análise feita pelo Politi refletiu pontos relevantes de uma conjuntura eclesiástica que está a exigir um amplo projeto de restauração, ultrapassando a obsessão do pontífice anterior, ainda vivo, em tentar “enquadrar a grande virada do Concílio Vaticano II no velho esquema da Tradição católica, negando toda possibilidade futura de reforma, conduzindo a Igreja a uma situação de absoluta estagnação no seu pontificado”. Apesar de Bento XVI ser um intelectual dotado de estupenda densidade teológica, ele conduziu seu pontifcado sem uma mínima capacidade de governar, com muito ínfima sensibilidade geopolítica.

Sobre o Vaticano, atualmente, algumas ponderações, explicitadas por notáveis da Igreja, deverão ser levadas na mais alta consideração pelo papa Francisco. A primeira delas, do cardeal Carlo Maria Martini, notável arcebispo aposentado de Milão, eternizado em setembro de 2012: “A Igreja ficou 200 anos para trás. Como é possível não se abalar? Temos medo em vez de coragem? … A Igreja Católica na Europa e na América está cansada. Nossas igrejas são grandes, nossas casas religiosas estão vazias e o aparato burocrático da Igreja cresce, nossos rituais e nossos hábitos são pomposos…”. Também o arcebispo filipino Sócrates Villegas reconheceu a deterioração: “A hierarquia eclesiástica precisa evitar a arrogância, a hipocrisia, o sectarismo. Precisamos punir todos os que erram entre nós, e não ocultar nossos erros”. E o monsenhor Carlos Aguiar Retes, presidente do Celam – Conselho Episcopal Latino-Americano, também se pronunciou: “A Igreja deve fazer com toda a honestidade um exame de consciência sobre a maneira de vivenciar a fé”. Sendo também lembrados com intensa criticidade construtiva o cardeal alemão Joachim Meisner, que defendeu a pílula anticoncepcional, e o cardeal Luís Sistach, de Barcelona, que expressou ser possível discutir o celibato dos padres.

A eleição do papa Francisco enfrentou fortíssimas forças conservadoras, reconhecidas como “Núcleo dos Conservadores Duros e Puros da Cúria”: o prefeito da Congregação para o Clero, Mauro Piacenza; o cardeal Antônio Cañizares, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos; o arcebispo de Madrid, Antônio Rouco Varela; o cardeal George Pell, arcebispo de Sidney; além do secretário de Estado Tarcísio Bertone, sobre quem pesam algumas acusações de ter induzido Bento XVI no cometimento de passos em falso, provocadores de crise. Algumas delas: frases de desdém sobre Maomé, na Alemanha em 2006; crises repetidas com o judaísmo, inclusive com a revogação da excomunhão do bispo Richard Williamson, negacionista do Holocausto; crise com o mundo da ciência, por ter definido o preservativo como um instrumento que agrava o problema da Aids; e pelas tratativas com o falecido bispo Marcel Lefebvre, inimigo ferrenho de significativos documentos conciliares.

Cinco crises cruciais foram identificadas na reportagem da revista Piauí, de Marco Politi: a carência de padres, o papel das mulheres na Igreja, as atitudes da Igreja diante da sexualidade na sociedade moderna, a reunificação das igrejas cristãs; a questão do poder papal no terceiro milênio. Segundo o jornalista, “a Igreja Católica, uma comunidade de mais de 1,2 bilhão de homens e mulheres dos cinco continentes, não pode mais ser governada como uma monarquia absoluta, com um papa imperador”.

A maior pisada de bola dos últimos tempos, entretanto, foi praticada pelo cardeal George Pell, arcebispo de Sidney, para quem o sucessor de Bento XVI deveria ser um papa italiano, “um pontífice latinoamericano só será possível nos próximos 100 anos”. Uma bobajada elefantina que seguramente rendeu alguns votos favoráveis ao papa Francisco.

Ratifico, neste canto do site do jornal A Besta Fubana, o que já foi divulgado pelo Luiz Berto, autor do romance premiadíssimo A Besta Fubana, leitura indispensável para quem não deseja tornar-se de mente jumentálica: Que o papa Francisco saiba bem dignificar o nome escolhido, pondo em prática as notáveis lições deixadas pelo inesquecível Fracisco de Assis!! Que os rapapés sejam postos de lado, as sapatilhas de grife definitivamente jogadas no incinerador, cedendo vez a uma espiritualidade cada vez mais solidária para com os menos favorecidos do Reino. Reverencio o papa Francisco, quiçá um predestinado para efetivar as alterações estruturais no Vaticano, desejadas pelo mundo inteiro.

(Publicada em 18.03.2013, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves