DERRAPAGENS MENTAIS


Há poucos dias dois fatos me encabularam bastante. O primeiro foi o cacarejar de um jovem pobre-menino-rico sulista, arrotando aos quatro ventos ter gasto uma fábula de dinheiro num camarote de um evento de pouca importância, explicitando um mundo de futilidades surreal, talvez sequelas perversas das telenovelas, onde se observa uma esculhambocracia ouro de lei, onde todo mundo tenta enganar/comer todo mundo, a hierarquia de valores se situando para lá dos aterros sanitários pouco higienizados.

O outro fato aconteceu no querido estado do Ceará, quando um jornal de grande porte da capital alencarina reproduziu um pronunciamento feito pela presidenta Dilma Rousseff, onde ela não dizia coisa com coisa, lido por mim um bocado de vezes, percebendo, a cada leitura, a emersão de um monte de fezes, pedindo ao leitor licença e perdão pelo trocadilho infame.

Para mim, não há ocasião mais constrangedora do que aquela vivenciada por um portador de alguns bons reais de inteligência diante de um endividado cerebral, tagarela e proprietário de carro importado, celular usado nos momentos mais inconvenientes, sempre se olhando ao derredor para testemunhar se está sendo devidamente contemplado, ou falando bosteira bem alto em restaurante lotado, fingindo-se genuíno fodão. Geralmente de razoável senso crítico, o primeiro se deblatera organicamente com as primariedades argumentantes do segundo, de um empolamento capaz de deixar éguas felizes com as suas inúmeras chorumelas.

Em tempos de mudanças aceleradas como as do século XXI, estamos mal saindo da primeira década, de transformações cercadas de muito radicalismo por todos os lados, onde humores e ironias não são facilmente admissíveis pelos estamentos tipo ou-tudo-ou-nada, que desejam impor posturas que quase sempre estão à reboque dos atuais quadrantes históricos. E que não conseguem assimilar a grande lição deixada por Erasmo de Roterdam, no Elogio da Loucura, publicado numa época onde se untava os atos e os fatos com uma pitada de loucura, tal e qual como agora, com os recados do Lulu Santos – “nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia”-, poucos ainda entendendo o tema de Forest Gump e as proféticas advertências dos grandes cineastas da atualidade, incluindo o que fez o notável Rei Leão, um filme para adultos conscientes que as crianças adoram.

Já houve outros contextos como os de agora, com encorpados primatas travestidos de homo sapiens, vestes talares reluzentes e medalhas de mérito no peito. E que se horrorizavam com as sátiras de então, que chocavam santarrões e filisteus, por desconhecerem a Batraquiomaquia de Homero, a loa feita por Virgílio ao mosquito e o diálogo do grilo com Ulisses, aquele que nunca foi presidente de partido mergulhado no fundo do mar.

Estou a imaginar o espanto de alguns toleirões do aqui agora socialite brasileiro ao tomarem conhecimento do que Apuleio falou acerca dos burros, Luciano sobre a mosca parasita e Sinésio sobre a careca. E cairiam para trás, esfolando os raciocínios, se lessem São Jerônimo citando o testamento do porco idealizado por um tal Grunnio Corocotta, não entendendo patavina do dito por Erasmo no seu livro mais famoso: “Na verdade, haverá maior injustiça do que, sendo permitida uma brincadeira adequada a cada idade e condição, não poder pilheriar um literato, principalmente quando a pilhéria tem um fundo de seriedade, sendo as facécias manejadas apenas como disfarce, de forma que quem as lê, quando não seja um solene bobalhão, mas possua algum faro, encontre nelas ainda mais proveito do que em profundos e luminosos temas?”

Como eu gostaria de ver, por muitos medalhistas, lido, relido e bem entendido o balaio de vergastadas do Erasmo de Roterdam. E que eles pudessem compreender melhor o significado de alma pequena, do Fernando Pessoa. Perceberiam, se assimilassem a mutabilidade dos tempos de agora, as ansiedades dos novos jovens, os padrões comportamentais e as exigências éticas de um mundo criança que não pretende soçobrar num subdesenvolvimento ignominioso, desagregador, destruidor de tradições sadias e construtor de sonhos impossíveis, travestidos de ideologias pouco cativantes, porque superadas umas e risíveis outras tantas.

Os humanismos solidários, mesmo por enquanto perdendo terreno para tecnocratas auditores travestidos de educadores fantasiados de comprometidos com o socialmente libertador, não devem ser jamais baralhados com pieguismos paspalhões que apenas conservam legiões na ignorância e na irreflexão, qualquer palmadinha nas costas se convertendo em apoteóticos agora-a-coisa-vai, desconhecendo, por completa anorexia analítica, a monumental biografia de Alexis de Tocqueville “os partidos nunca se conhecem: se aproximam, se empurram, se agarram e nunca se veem” – , o profeta da democracia, de autoria de Hugh Brogan, acadêmico eminente da Universidade de Essex.
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Fernando Antônio Gonçalves é pesquisador social.

(Publicado no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco, 02.12.2013
Fernando Antônio Gonçalves