CUTUCAÇÕES SALVÍFICAS


Eu gosto que me enrosco dos cutucadores, daqueles que despertam consciências, alertando os abiscoitados sobre os precipícios que se avizinham. E a cidade do Recife levou, dias atrás e pelas páginas da revista ALGOMAIS, duas dedadas que devem tê-la deixado com o fiofó ardendo e os óios lacrimosos, bem arrependida das inúmeras bosteiras (besteiras que fedem pra baralho) praticadas em passados recentes, quando talentos vários, incluído o padre Lebret, apontavam para as reestruturações indispensáveis que bem poderiam deixar a capital pernambucana de bem com os amanhãs que já se aproximavam do pedaço.

Dois textos valentemente cutucadores me deixaram mais consciente sobre a necessidade de ser politicamente mais crítico, sem papas na língua e com as mãos bem distanciadas dos bagos do poder, apenas espelhando muito amor por uma capital que me deixou apaixonado desde quando assisti, aos 9 anos de idade na rua de São João, casa dos tios Maria e Erard Jambo, o grandioso desfile do Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas, dele posteriormente me tornando Sócio Emérito por indicação do pesquisador Evandro Rabelo.

Sem ordem de importância, o primeiro texto cutucador foi a entrevista dada pelo professor Sílvio Meira, um dos mais talentosos docentes da UFPE, que externou considerações que merecem múltiplos aplausos: “O Recife é muito pequeno para ter opinião sobre si mesmo”; “Não estamos mais no tempo do imaginário ingênuo sobre a cidade. Estamos no tempo do imaginário criado”; “A cidade precisa voltar a ser um lugar de vida e de encontro”; “Não vamos resolver problemas antigos com soluções antigas”; “Cidade Smart é um redesenho da vida urbana, em toda sua organização, com baixo impacto na vida das pessoas. No Brasil, nenhuma o é. Nem na América Latina. A América Latina é a estação da beleza e do caos”; “Londres, que tem 2.500 anos, melhorou muitos nos últimos anos, graças a um sistema muito simples: planejamento, foco em um objetivo, meta, execução, cobrança. Enquanto isso, Recife está no passado, que continua na ilusão de que pode ter um porto no centro de uma cidade de 15 milhões de habitantes”; “O Recife tornou-se irrelevante no cenário de poder regional. Nos próximos anos, os dois prefeitos mais poderosos de Pernambuco serão o de Ipojuca e o de Goiana. E aí os prefeitos do Recife e de Olinda vão ter que se juntar para ir tomar cerveja no Carnaval”; “O Recife, hoje, tem a necessidade de criar um significado para si. Acho que a saída para o Recife é ser ‘a cidade do conhecimento’”; “O Recife precisa olhar para o futuro, se definir e passar a ser uma parte menor de um todo muito maior e organizado, que seria a Região Metropolitana, com um governo metropolitano, com o Recife sendo uma subprefeitura”; “Já dizia o produtor cultural Roger de Renor, ‘o Recife é a maior cidade pequena do mundo’, o que leva a um apequenamento dos seus líderes”; “Todo mundo está a fim de resolver o problema da cidade, desde que isso não tenha nenhum impacto na sua vida pessoal”.

O segundo texto cutucador é de um arquiteto, Fancisco Cunha, e aponta os perigos que afetam o Recife, favorecendo uma baita desurbanização de uma cidade que já carregou o laurel de Veneza Brasileira: décadas de falta de planejamento de longo prazo; perda do controle urbano, bastando olhar a fiação imoralmente enlinhada pelos postes da cidade; pré-colapso da mobilidade, acarretada pela falta de prioridade para o transporte coletivo e uma estupenda ineficiência da engenharia de tráfego e do controle do trânsito; enorme precariedade da oferta dos serviços públicos, numa cidade onde apenas 1/3 dos domicílios tem saneamento básico. Tudo sendo agravado pelo ritmo acelerado da economia pernambucana, que deveria ter no Recife o seu palco materializador. E ele cutuca mais: “desconfio que o tempo dedicado pelos prefeitos do Recife à política partidária é muitas vezes maior do que aquele dedicado à efetiva gestão urbana. Uma lamentável inversão de prioridade”. E revela um perigo que se agiganta: “a mediocridade como norma e a perda para sempre da alma da cidade”. E ainda aponta para as qualidades indispensáveis para uma revitalização da capital pernambucana: determinação e coragem, foco e ousadia.

Na minha opinião de amoroso recifensizado nunca abiscoitado, somente através da transformação do Recife num baita Centro de Excelência do Conhecimento, abarcando todos os níveis de ensino, poder-se-á voltar a sonhar com uma cidade criativa, competente e compromissada socialmente, sem os triunfalismos boçais que apenas a ridicularizam, com uma classe média que nunca se espelhará mais na didaticamente bem esculhambativa novela Avenida Brasil, apreendendo a lição basilar do poeta Fernando Pessoa, segundo a pena do heterônimo Álvaro de Campos: “Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, / Quanto mais personalidade eu tiver, / Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, / Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, / Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, Estiver, sentir, viver, for, / Mais possuirei a existência total do universo, / Mais completo serei pelo espaço inteiro fora”.

(Publicada em 21.05.2012, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco.
Fernando Antônio Gonçalves