CRER DE UM MODO DIVERSO
CRER DE UM MODO DIVERSO
Andrés Torres Queiruga
No Evangelho dispomos da melhor e insuperável imagem de Deus já aparecida na história. O passar dos séculos, no entanto, a manchou e deformou, até torná-la irreconhecível sob muitos aspectos, nem sempre os menos importantes”, escreve Andrés Torres Queiruga, teólogo, em artigo publicado por Adista, 18-10-2010. A tradução é de Benno Dischinger.
Andrés Torres Queiruga é professor da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. É licenciado em Filosofia e Teologia pela Universidade de Comillas, Espanha, doutor em Filosofia pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália. Entre suas obras publicadas em português, citamos Creio em Deus Pai. O Deus de Jesus como afirmação plena do humano (São Paulo: Paulinas, 1993); O cristianismo no mundo de hoje (São Paulo: Paulus, 1994); A revelação de Deus na realização humana (São Paulo: Paulus, 1995); e Repensar a ressurreição (São Paulo: Edições Paulinas, 2004). No livro A teologia na universidade contemporânea, organizado por Inácio Neutzling e publicado pela Editora Unisinos, 2005, Queiruga é autor do artigo A teologia a partir da modernidade.
Eis o artigo.
No Evangelho dispomos da melhor e insuperável imagem de Deus já aparecida na história. O passar dos séculos, no entanto, a manchou e deformou, até torná-la irreconhecível sob muitos aspectos, nem sempre os menos importantes.
Considerando os conceitos de fundo, assinalarei aqui alguns que requerem com maior urgência ser revistos a fundo, reagrupando-os em três capítulos.
Contra uma leitura distorcida da criação
Embora em vias de superação, um dos maiores problemas que traz consigo a teologia atual é a leitura literal ou fundamentalista da Bíblia. Em particular, diz respeito nada menos do que às maravilhosas narrações da criação no Gênesis. Nestas, com o profundo simbolismo da linguagem mítica, nos é expressa a intenção de Deus de procurar para nós nada mais do que a realização, o amor e a felicidade. É isto que quer significar o símbolo do “paraíso”: a meta à qual estamos destinados. A esta meta se opõe o mal; por isso a Bíblia o coloca “fora de Deus”. A narração mítica, preocupada em apelar à bondade, se firma principalmente sobre o pecado humano que, como mostram os primeiros capítulos – do assassínio de Caim à corrupção universal -, produz tantos danos. Mas, tomar ao pé da letra, convertendo em explicação física ou metafísica o que quer ser simplesmente uma exortação moral, conduz ao absurdo.
1) Iniciemos com o pecado original: mesmo após ter sido reconhecida como mítica, a narração concreta da árvore, do fruto e da serpente faz, no entanto, perdurar a terrível idéia que os pavorosos males do mundo sejam o um “castigo divino” por causa da culpa história cometida por nossos avós. Com isso, no inconsciente coletivo estão se imprimindo duas concepções monstruosas: a) que Deus é capaz de castigar de modo terrível, e b) que ele o faz a milhares de descendentes que não tem a mínima culpa por aquele presumido erro. Além disso, consolida-se a idéia – tão difundida e prejudicial – que, em última instância, se existe mal no mundo é porque Deus o quis e o quer, dado que o paraíso teria sido possível sobre a terra. E, acima de tudo, o castigo seria desproporcionado. Deste modo, sobrevive a crença generalizada de que o sofrimento, a enfermidade e a morte provenham de uma decisão divina, como forma de castigo.
2) Paralelamente a esta, existe a idéia de que o homem e a mulher tenham sido criados para a “glória” de Deus e ao seu serviço”. Nestas palavras pode existir um significado aceitável, mas, na mentalidade normal elas tem sido tomadas literalmente: é Deus que exige que o sirvamos para salvar a alma; contrariamente, haverá o castigo. Feuerbach fundamentou aqui o seu ateísmo: “para que Deus seja tudo, o homem não deve ser nada”. Quando, ao invés, a verdade é o contrário: ao criar-nos, Deus não pensa em si mesmo, mas só e unicamente em nosso bem. Com a mesma linguagem, seria antes necessário dizer que, como se manifestou em Jesus, Deus é Aquele que nos “serve”, porque Ele nos ama e temos disso necessidade.
3) A moral, longe de ser a palavra de amor e a promessa de ajuda que nos orienta e sustenta em função da verdadeira felicidade, se transforma num peso imposto por Deus. Kant denunciou esta concepção como indigna e infantilizante. E o pior é que faz ver o esforço, a disciplina e também o sacrifício que muitas vezes – para cada pessoa, crente ou não crente – a moral comporta, como algo que Deus nos impõe porque o quer, enquanto poderia tornar-nos a vida mais fácil. Certamente, jamais será possível avaliar quanto ressentimento esta terrível concepção tem acumulado na consciência de muitos fiéis.
4) Tudo isto, agravado em nível intolerável com a idéia do inferno, como castigo para aqueles que não “sirvam” ou não “cumpram”. Deus, que ama sem limites e perdoa sem condições, acabou sendo descrito como capaz de castigar por toda a eternidade e com tormentos inauditos certas faltas definitivamente sempre pequenas, fruto de uma liberdade débil e limitada. O crescimento da sensibilidade comporta, em nossa época, uma oposição generalizada à pena de morte e também ao ergástulo: será que os homens são melhores que Deus?
5) A visão do pecado marcha paralelamente. Tomás de Aquino já havia dito que o pecado não é um mal porque faz mal a Deus, mas porque o faz a nós: “porque ofendemos Deus na medida em que agimos contra o nosso bem”. Todavia, grande parte da teologia e da pregação continua ignorando que a coisa fundamental é o interesse de Deus a fim de que não façamos dano a nós mesmos, não estraguemos a nossa vida e arruinemos a nossa realização. O pai do “filho pródigo” não se preocupa com sua honra ou com sua ofensa, mas pelo fato que o filho “estava morto e retornou à vida, estava perdido e foi reencontrado”.
Tudo isto, unido à deformação moralista, fez com que, no fundo da consciência de muitas pessoas, tenha crescido como um verme venenoso a idéia que o pecado seria estupendo para nós, mas não podemos gostar dele porque Deus no-lo proíbe. Em outras palavras, Deus não quereria que fôssemos felizes.
Contra uma leitura deformada da redenção
Se isto é o que sucede com a criação, as consequências se fazem sentir ainda mais pesadamente na redenção. A maravilha que jamais teríamos imaginado por nós mesmos, de um Deus que se faz presente na história para ajudar-nos, – de mil modos e com infinita paciência, – a vencer o mal e o pecado, se transforma para muitos numa terrível “prestação de contas”, com um castigo no início e uma ameaça no final.
1) Começa-se com um particularismo inconcebível. Um Deus que, criando por amor, suscita desde sempre uma salvação onde há um homem ou uma mulher, ou seja, por toda parte e e-spressamente em todas as religiões, tem sido apresentado por muitos séculos como unicamente preocupado por um só povo, aquele “eleito”. Os outros teriam permanecido fora de sua revelação e de sua plena salvação: extra eccleciam nulla salus. No máximo ter-lhes-ia permanecido a esperança – numa espécie de longuíssima “lista de espera” – que um dia teria chegado para eles a “missão” (que, para milhões de pessoas, jamais chegou nem chegará). Por sorte, desde o Concílio Vaticano II, esta terrível visão está em vias de superação. Porém os seus efeitos perduram com intensa vivacidade: continua existindo muito dogmatismo e muito exclusivismo; demasiada resistência a uma revisão dos conceitos de revelação, e a um generoso diálogo das religiões.
2) Ainda mais grave tem sido a visão sacrifical de todo o processo. O esforço de Deus para intensificar ao máximo sua presença e abrir caminhos à sua graça; a revelação, através de Jesus, do seu amor sem medida e de sua compreensão sem limites das nossas fraqu4zas e do nosso pecado; o seu não retrair-se embora tal amor lhe custasse nada menos do que o assassínio de seu “Filho predileto”… tudo isto tem sido interpretado como um “preço” que Ele exigia, como um castigo necessário para “aplacar sua ira”.
É doloroso usar estas expressões e, no entanto, embora possa parecer incrível, elas ainda podem ser lidas – por exemplo, tomando à letra “o abandono” sobre a cruz – em importantes teólogos de nossa época: não só em Lutero e Calvino, que ainda estavam próximos à Idade Média, mas também em Barth, Moltmann e Urs von Balthasar, para citar alguns dos mais expressivos. Insisto porque, embora não se ponha em discussão as boas intenções, é indispensável evitar tudo o que possa obscurecer o amor infinito do Pai. A partir de uma perspectiva de fé, numa interpretação não fundamentalista, devemos estar seguros que Deus jamais esteve tão junto ao seu Filho como quando o puseram na cruz (não o “abandonou”), e que jamais teria permitido sua morte, se tivesse sido possível evitá-la (não foi Ele que “quis” a agonia do horto das oliveiras).
3) Enfim, há algo que, no fundo, é muito mais grave, porque abrange tudo: todo o sofrimento do mundo seria um castigo de Deus por causa de um pecado que, fora de Adão e Eva, nenhum outro cometeu; de modo que, se Deus não nos castigasse – isto é, se fosse compassivo e perdoasse – viveríamos num paraíso. E depois, para perdoar-nos, teria imposto nada menos do que a sacrifício cruento de seu Filho. Enfim, se não nos comportarmos bem, nos espera o castigo eterno do inferno (sobre o qual, com consequências deletérias, tanto insistiu a “pastoral do medo”).
Este esquema se incrustou como algo de tão óbvio no imaginário religioso que nem sequer se vê agora e nem se percebe sua autêntica monstruosidade que, afortunadamente, quando é explicitada, quase ninguém a toma ao pé da letra. No entanto, precisamente por isso, é necessário expô-lo cruamente para poder refutá-lo com todas as forças e substituí-lo com o verdadeiro, já proposto, no fundo, por Santo Irineu no II século: criação na inevitável fraqueza do nascimento; apoio amoroso de Deus na história, não obstante as nossas faltas e pecados; cume deste apoio na plenitude salvadora de Cristo; esperança de salvação plena na Glória. Vale dizer a promessa de um nascimento e a esperança de uma felicidade gloriosa.
Contra uma experiência deformada da espiritualidade
Como era óbvio, esta dupla visão, que agora perfilamos esquematicamente, acaba por articular a expe-riência da fé na vida concreta.
1) A visão dualista se coloca em primeiro plano, porque é esta que, de certa maneira, organiza o espaço religioso. Deus lá em cima e nós aqui em baixo, o sagrado e o profano, o que se refere a Deus e o que se refere a nós, a Igreja e o mundo… marcam a fogo a vida espiritual. Seria ingênuo pensar que tal distinção possa ser completamente supressa, já que responde a um dado real: a diferença entre Deus e sua criação. Esta diferença afirma, no entanto, o nosso ser: Deus não nos rouba espaço. Ao contrário: quanto mais está presente, mas nos faz ser; quanto mais acolhemos sua ação, tanto mais realizamos a nós mesmos. O engano é converter a diferença em distância, a distinção em dualismo, o apoio em imposição. Porque então Deus se transforma num senhor e a religião consiste em servi-lo, aplacá-lo, solicitar-lhe ajuda e favores, para obter o seu prêmio e evitar o castigo.
2) Desta concepção deriva espontaneamente uma visão negativa da vida. A redenção se separa da criação e se contrapõe a ela, de modo que todo o criado acaba por aparecer indiferente para a fé, quando não aparece negativo e corrupto. Textos da Escritura, em si profundos e veneráveis, acabam sendo lidos em sentido oposto àquele que, na realidade, queriam expressar. Assim, por exemplo, a solicitação de se negar a si mesmo ou a perder a própria vida não pode significar a anulação da própria vida, mas exatamente o oposto: negar a nossa negação, ou seja, o que prejudica o nosso ser autêntico ou o que nos impede de realizar-nos e chegar à plenitude. Deus não quer anular o nosso ser, mas levá-lo à sua afirmação literalmente infinita.
3) As consequências têm sido graves. Daqui nasceu uma espiritualidade inimiga do corpo e desconfiada de todo prazer, que optava pela fuga mundi e por agere contra como estilo global. Afirmou-se, assim, um espírito de sacrifício que, inconscientemente, colocava entre os fiéis a idéia que Deus está contente quando nos vê sofrer, ou que concede favores em troca do nosso sofrimento gratuito ou dos nossos sacrifícios. Não se pode estranhar que se tenha chegado muitas vezes a excessos que hoje nos causam horror (certos grupos e certos santuários ainda mostram disso demasiados resquícios) e que se possa ter chegado a acusar o cristianismo de ser inimigo da vida (Nietzsche).
4) Ainda pior: este ponto de vista selou com evidência o sofrimento verdadeiramente cristão. Não aquele procurado com a mera ascese ou pela própria perfeição, mas aquele que, como Jesus, é assumido quando é necessário por amor aos outros. É o trabalho do serviço, é pôr em risco a própria vida em favor da justiça, é ser capazes de renunciar ao que nos pertence em favor dos pobres. É, em definitivo, o que a teologia da libertação e o exemplo de seus mártires procuram ensinar-nos, tendo-o aprendido de Jesus: Ele não evitou o prazer normal do viver, a ponto de ser considerado um “comilão e um beberrão” por não haver praticado uma acesse artificiosa: porém foi capaz de amar “até o extremo”, chegando a dar sua vida por amor a todos.
5) Enfim, assinalemos algo de menos evidente, mas de importância decisiva: a inversão radical da experiência cristã da graça, que chegou a mudar o sentido da oração: criando-nos por amor, Deus toma a iniciativa absoluta, tanto para conduzir-nos à dimensão do existir (momento da criação), como para ajudar-nos em sua realização (momento salvífico). Por isso, nos é solicitado acolher sua iniciativa: deixar-nos existir e salvar por Ele, aceitando sua graça e colaborando com sua ação em nós e nos outros. Todavia, sem dar-nos conta, invertemos tudo até o ponto de parecer que somos nós aqueles que tomam toda iniciativa, como se fôssemos quem verdadeiramente está interessado na salvação e devêssemos convencer Deus a interessar-se também Ele.
A prece transforma-se, então, em exigência que ousa recordar a Deus as necessidades do próximo, convencê-lo a ajudar os enfermos ou as vítimas; podemos até mesmo oferecer-lhe dons e sacrifícios para que se anime; e, enfim, chegamos a repetir-lhe em coro que seja bom e compassivo: que “escute e tenha piedade”. Sei que estas palavras são injustas em relação às intenções de quem reza. Mas, é necessário revelar a falsa orientação e a terrível inversão de papéis entre Deus e nós.
Sei muito bem que existem objeções e dificuldades… Porém, é necessário refletir e falar a respeito. A evidência primária destas reflexões deveria animar-nos a uma nova criatividade e ao esforço sincero por atualizar a compreensão e a experiência da fé.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos, 20-10-2010