CRENÇA E RESISTÊNCIA


O movimento civilizacional – expressão feliz do Fernando Pessoa, esse lusitano genial – somente se consolida pela multiplicação de iniciativas preventivas contra procedimentos absolutistas ainda em vigência, inibindo as incivilidades mais diferenciadas. Grosserias muitas vezes geradas por posições simplistas na desconfiança de tudo e de todos, sem a oferta de razões convincentes. E simplismos que se equivalem às posturas de adesão compulsiva a idéias revestidas de boa aparência ou de conteúdos sedutores, aparentemente populares, a tolerância e a criticidade distanciadas léguas das teses propostas.
Recentemente, a Universidade do Estado de São Paulo, através da sua editora, tornou público um trabalho de Barbara Herrnstein Smith, considerada uma das mais conceituadas intelectuais norteamericanas. Intitulado Crença e Resistência, as análises da autora apontam para as melhores alternativas de como discutir os termos verdade, conhecimento, significado, razão, objetividade e justificativa, com criticidade e tolerância, sem as puerilidades típicas dos nostálgicos e dos fundamentalistas políticos e religiosos.
Estou convencido da existência de três tipos de seres humanos, diante das duas faces de um mesmo espelho, num mundo estarrecido diante das forças econômicas e tecnológicas que exigem integração e uniformização, uma cultura McWorld, na definição de Benjamin Barber, Universidade de Maryland: os autoconscientes, autônomos e seguros de seus próprios horizontes e limites; os mergulhados, inundados por suas emoções e incapazes de safar-se delas; e os resignados, os que aceitam passivamente viver como são, num como Deus quis, como se Ele fosse o responsável pela nossa incapacidade de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, um Pai desatento aos pequeninos do Reino
As análises de Barbara Herrnstein, a exigirem uma leitura nunca de oitiva, tornam-se mais oportunas para aquelas lideranças ainda muito distanciadas da compreensão nítida do que seja uma sociedade complexa, onde os interesses nobilitantes ainda estão – em gênero, número e grau – muitos furos abaixo de um mínimo compatível com as exigências ético-sobrevivenciais do atual momento brasileiro. Um contexto ainda não explicitamente explosivo, a exigir compreensão analítica e fortalecimento das instituições políticas, na razão inversa do arrefecimento do binômio messianismo triunfante x inconformismo ainda sem estopim.
Tenho baita aversão às idéias vagaluminosas, aquelas que somente reluzem pela parte de trás. E que são expostas por quem nunca teve o cuidado de analisar, se auto-definindo, o exposto por Karl Mannheim, décadas passadas: “toda nossa tradição educacional e nosso sistema de valores ainda estão adaptados às necessidades de um mundo paroquial e no entanto espantamo-nos porque as pessoas se saem mal quando têm de agir num plano mais amplo”. Trocando em miúdos: “quem nunca comeu mel, quando come se lambuza”. Se lambuza todo e lasca de fio a pavio as estratégias de redução dos nossos escandalosos níveis de pobreza. Para gáudio dos oligarcas e esquerdeiros que, na moita e sem alarde, fingindo-se de apoiadores, desejam que as coisas continuem cada vez mais adversas, para aproveitamentos eleitoreiros futuros.
Reverencio Herbert de Souza, o Betinho, que se eternizou disseminando um sonho, o de que podemos fazer o Brasil um pouquinho melhor a cada amanhecer. E que seguramente leria com muita avidez o livro da Barbara Hernstein, uma intelectual favorável ao aprimoramento da capacidade comunitária de eleger alternativas estruturadas a partir de amplos debates. Postos à distância os cricrismos e as democratices que nunca disfarçam as intenções de submissão às manifestações das urnas, em eleições já avizinhadas.