CORAGEM SOLIDÁRIA


No início da década de 40, desafiar as mais banais orientações do governo do Estado Novo do Brasil era uma temeridade. Dependendo do caso, o destino inevitável era a prisão. Foi um período muito pior na Europa, onde o avanço da ocupação nazista impunha o clima de terror. Pois foi esse o cenário para o capítulo mais intenso da vida do embaixador Luís Martins de Souza Dantas, que durante vinte anos chefiou a missão diplomática brasileira na França.

Movido pelo que chamou mais tarde de “sentimento de piedade cristã”, desafiou ao mesmo tempo as duas ditaduras. Concedeu vistos diplomáticos para entrada no Brasil a centenas de pessoas que, do ponto de vista da política de imigração brasileira, eram consideradas indesejáveis. Eram judeus, comunistas e homossexuais que fugiam dos horrores do nazismo. Com seu gesto, Souza Dantas salvou cerca de 800 pessoas do extermínio. Tornou-se o equivalente brasileiro do industrial alemão Oskar Schindler, que salvou do holocausto 1.200 pessoas, conforme retratou o cineasta Steven Spielberg em seu A Lista de Schindler.

Os feitos de Souza Dantas ainda não estão nos livros escolares. Ficaram durante décadas restritos à memória das famílias que ajudou a salvar. Parte importante dessa história ficou confinada aos documentos da burocracia do Estado, guardados em forma de memorandos nos arquivos históricos do Itamaraty e do Arquivo Nacional. Juntando principalmente essas duas fontes de informação, o historiador carioca Fábio Koifman construiu a biografia mais nítida do embaixador, intitulada O Quixote nas Trevas – O Embaixador Souza Dantas e os Refugiados do Nazismo, Record.

Resultado de sua dissertação de mestrado, os mais de 7.500 documentos que reuniu ajudaram a erigir a lista nominal dos 425 judeus salvos por Souza Dantas, que é a base do processo de reconhecimento pelo Museu do Holocausto, em Israel. Dos depoimentos, colhidos ao longo de quatro anos de trabalho, surgem histórias impressionantes e até agora inéditas, como a do diretor teatral polonês Zbigniew Ziembinski, considerado um dos maiores revolucionários das artes cênicas no Brasil. Foi graças a Souza Dantas que ele aportou no Rio de Janeiro em 1941, depois de perambular pela Europa em busca de uma saída do inferno da guerra. “Tinha gente deitada no chão, na frente das embaixadas, pedindo, esperando, submetida aos maiores escárnios, às maiores torturas”, lembrou Ziembinski, anos mais tarde, num registro inédito de suas memórias.

Ziembinski, cuja origem judaica nunca foi provada, estava entre as centenas de pessoas que vieram para o Brasil nos vapores que faziam a travessia do Atlântico. A viagem não constituía o maior problema. O grande obstáculo para os refugiados não era conseguir um navio, embora fossem raros. Difíceis eram os vistos necessários à entrada nos países de destino. Como é comum até hoje, o êxodo dos refugiados era um fantasma para muitas nações. No Brasil, somava-se à lista de dificuldades a orientação contrária à imigração de judeus.

Mesmo sabendo do risco de contrariar Vargas, Souza Dantas mandou abrir as portas de sua embaixada, em Vichy, para onde transferiu a representação diplomática após a ocupação da França pelos nazistas. Sua coragem, no entanto, lhe rendeu problemas, como um inquérito, aberto pelo departamento administrativo do serviço público, a mando de Vargas. Foi acusado de dar vistos irregulares. Em telegrama ao Itamaraty, Souza Dantas afirmou em sua defesa que, depois de proibido, não deu “um visto sequer”. Era mentira. Descumprindo ordens expressas, salvou ainda dezenas de pessoas. A prova viva do destemor do diplomata chegou para Koifman por meio do depoimento da polonesa Chana Strozemberg, cujo visto foi obtido em janeiro de 1941, um mês após a proibição, mas com data falsificada.

Para dar curso a sua ação solidária, Souza Dantas usou os mais diversos expedientes. Concedeu vistos diplomáticos a portadores de passaporte comum, para tornar mais garantida a aceitação. Alguns nem sequer tinham o documento. Escrevia normalmente em francês nos passaportes para facilitar a leitura no porto de embarque. Em outros, ele oficiou aos colegas de outras embaixadas pedindo por brasileiros. E o mais precioso da memória do embaixador é que, num tempo em que muitos diplomatas vendiam vistos e aceitavam joias como pagamento, ele nunca se corrompeu. O marido de Chana Strozemberg, por gratidão, chegou a insistir com Souza Dantas para que aceitasse um presente. Como resposta ouviu a sugestão para que o doasse à Cruz Vermelha Internacional. A lista de bens deixados pelo diplomata, recolhida em seu quarto no Grand Hotel de Paris, onde morava quando morreu, em 1954, registra como objeto mais valioso um cordão de ouro com a medalha do barão do Rio Branco. Do trabalho cuidadoso de Koifman brota uma das mais dignificantes biografias brasileiras.
(Publicada em 18.08.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves