COMBLIN: BASTÃO DE DEUS QUE FUSTIGA OS ACOMODADOS
Estou acompanhando o que se anda dizendo nos últimos dias sobre o nosso irmão teólogo José Comblin. Houve quem tentou até se compadecer dele dizendo que já passou dos oitenta e chegou a insinuar que ele está meio “gagá”. E por está gagá, coitadinho, passou a dizer umas coisas fora de lugar, fazendo umas afirmações pessimistas, vendo o horizonte escuro, tendo uns ataques de “alucinação”, enxergando coisas que não existem, falando mal da hierarquia da Igreja e assim por diante.
Todas essas coisas me fizeram imediatamente pensar nos profetas de todos os tempos. Também eles, quando começaram a falar sem meios-termos, a “dar nomes aos bois”, a colocar o dedo em certas feridas, foram logo acusados de serem visionários, lunáticos, inimigos da religião e do rei. Amós, por exemplo, foi acusado por Amasias, sacerdote de Betel e “capanga” de Jeroboão, de ser um visionário. Por essa razão foi impedido de profetizar no santuário do rei (Am 7,10-17). Jeremias foi surrado e preso (Jr 20,1-6). Antes deles, Elias teve que se refugiar no deserto para não ser assassinado por Jezabel (1Rs 19,1-8). Geralmente todos os profetas são perseguidos e ridicularizados por que falam a verdade e não camuflam a realidade. Creio que o paradigma de todos os profetas é Miquéias, odiado porque nunca profetizava coisas boas, mas só desgraças (1Rs 22,8). Ou seja, não era bajulador e conivente com os poderosos, mas falava apenas o que Javé mandava falar (1Rs 22,14). Era fiel somente Deus.
Também Jesus, o profeta por excelência, não escapou da fúria dos poderosos. Falou o que pensava, do que estava convencido, atacando tanto o sistema religioso como o poder político. Por essa razão chegaram a pensar que ele estava louco (Mc 3,21). Terminou os seus dias crucificado como um malfeitor. Tinha feito tremer a ordem estabelecida e ameaçado a posição dos privilegiados, desmascarando suas hipocrisias e suas falsidades (Mt 23,1-36).
Não. Comblin não está gagá, não está louco, não está tomado de pessimismo e nem tão pouco de derrotismo. Comblin é um dos poucos profetas que ainda temos na Igreja dos nossos dias. Infelizmente em tempos de exílio eclesial, como o que estamos vivendo atualmente, é rara a figura do profeta. “Nesse nosso tempo, não há chefe, profeta ou dirigente” (Dn 3,38). Quando a corrupção atravessa os limiares da religião, e permanece entranhada dentro dela, são poucas as pessoas dotadas de clareza e de lucidez (1Sm 3,1). Todos querem fazer carreira e preferem silenciar, mesmo sabendo interiormente que o que acontece não condiz com o projeto de Deus. Como verdadeiro profeta, Comblin não se deixa enganar e não se ilude com o que vê. Enxerga longe, além das aparências e dá o seu prognóstico, mesmo que tal prognóstico, como no caso de Miquéias, apareça cruel, sem piedade e sem esperança. Mas é assim mesmo e assim deve ser, pois se trata de profeta e de profecia.
O profeta é o bastão de Deus que fustiga os acomodados. E onde há profetas verdadeiros e autênticas profecias há incômodo e mal-estar para muita gente. Dom Tonino Bello, bispo de uma minúscula diocese do sul da Itália, falecido ainda jovem, vítima de um câncer, gostava de afirmar que o autêntico cristão deve consolar os aflitos e afligir os consolados e acomodados. De fato, ele incomodou bastante seus colegas bispos italianos. Sua simplicidade e pobreza, sua determinação em defender os pobres, especialmente os imigrantes africanos, o colocou em rota de colisão com as eminências e excelências. Teve inclusive que dar explicações à cúpula da Igreja acerca da sua atitude audaciosa de acolher no palácio episcopal alguns imigrantes africanos. Mandaram-lhe como visitador um bispo de uma diocese da Sicília, o qual, logo depois de sua visita a Dom Tonino, ficou conhecido no país por suas ligações com a máfia, sendo inclusive processado pela justiça italiana. Não foi preso porque a diplomacia vaticana entrou em ação e não permitiu que isso acontecesse.
Comblin é um autêntico teólogo e como tal não se contenta em ficar repetindo o que os outros já disseram. Não é teólogo-papagaio e nem faz teologia de coorte, apenas repetindo frases do Catecismo ou de documentos da Igreja para agradar a cúpula eclesiástica, receber elogios ou até compensações, como, por exemplo, uma roupa roxa ou avermelhada. Comblin faz teologia de verdade, ousando dizer o que ninguém diz, propondo alternativas para o que aí está, apontando caminhos que podem ser trilhados. Como teólogo-profeta mostra que certos modelos atuais de Igreja estão carcomidos pelo tempo e por vícios seculares e não dizem mais nada para a humanidade que sonha com outro mundo possível e com uma comunidade eclesial que, de fato, seja sinal desse novo mundo.
Com sua ousadia e determinação profética, Comblin não tem medo de afirmar que a Igreja precisa perscrutar os “sinais dos tempos”. Não pode viver acomodada, acreditando que o atual modelo eclesiástico é o melhor de todos os tempos. Creio que Comblin está sendo ridicularizado porque do alto de sua sabedoria anciã tem a coragem de falar palavras proféticas como essas: “A experiência mostra que a hierarquia errou muitas vezes na condução da Igreja em circunstâncias determinadas. O Espírito mostra o caminho por outros meios. A hierarquia deve estar atenta aos sinais dos tempos que alguns cristãos têm o dom de entender. Deve escutar se não quer errar e provocar desastres” (A profecia na Igreja, São Paulo: Paulus, 2008, p. 11). Alguns membros da hierarquia não suportam tanta sinceridade e honestidade. Estendendo o dogma da infalibilidade papal para todos os casos e para todos os hierarcas, sem exceção, não admitem que alguém diga que alguns deles, em algum momento, erraram e continuarão a errar se não souberem escutar. Atribuem a si mesmos uma prerrogativa divina, ocupando na Igreja e na terra um lugar que pertence exclusivamente a Deus.
Não temos como negar. É visível a mudança de rota na Igreja Católica Romana a partir do final da década de 1970. Aos poucos as propostas e intuições do Concílio Vaticano II são postas de lado ou reinterpretadas a partir de uma eclesiologia jurídica, segundo a qual o direito canônico está acima do Evangelho. Enquanto se perde tempo com a discussão de temas banais, questões sérias não são enfrentadas. Basta lembrar, por exemplo, o caso da centralidade da celebração eucarística. Institui-se um ano eucarístico, afirma-se que a Eucaristia é o centro e o cume da vida cristã, e, no entanto, não se resolve o problema gravíssimo das milhares e milhares de comunidades católicas que ficam meses e até anos sem a celebração eucarística dominical.
Qualquer pessoa honesta, que conheça bem a situação da Igreja no momento atual, não poderá negar que ela está sendo dominada por grupos e movimentos ultraconservadores. Tais grupos e movimentos estão trazendo de volta a Igreja da Contra-Reforma, fechando cada vez mais os espaços de participação do povo de Deus, impondo uma moral rigorista e “tirando do baú” costumes e tradições arcaicas, “mofadas” e ridículas. Os pobres são cada vez mais esquecidos e é notória a adesão desse modelo de Igreja a sistemas políticos de direita. Com isso a Igreja Católica Romana vai se distanciando da realidade do povo e se tornando cada vez mais um sinal opaco e sem sentido do Reino de Deus. Por essa razão é cada vez mais visível o afastamento das comunidades eclesiais de pessoas com um pouco de bom senso e com consciência crítica. A Igreja Católica vai se transformando, no dizer de Cappelli, numa comunidade “infantil, feminil e senil”. Uma Igreja só de crianças e de mulheres idosas. Alguns até se empolgam porque, de vez em quando, aparecem jovens distraídos em alguns espaços religiosos. Mas não deveriam se iludir. A participação de jovens nas comunidades católicas não ultrapassa a percentagem de 1% do total de jovens da nossa sociedade.
Dizia pouco antes, citando o profeta Daniel, que na atualidade não temos mais nem chefe e nem profeta. De fato, as lideranças cristãs transformaram o serviço de coordenação e de presidência das comunidades em puro carreirismo. Por isso adotam uma atitude de subserviência, não se importando com os reais problemas de suas comunidades. Os próprios bispos não mais cultivam a solicitude por todas as Igrejas, elemento fundamental do ministério episcopal e do colégio episcopal. Assim sendo, não falam com as instâncias vaticanas com a autoridade de bispos das Igrejas locais e da Igreja Católica, de igual para igual. Agem com timidez e medo, deixando de oferecer à direção da Igreja em Roma seus pareceres sobre questões e problemas eclesiais inadiáveis. Sem falar em todo o problema da onipotência da burocracia eclesiástica que, como nota o próprio Comblin, não se move e não faz nada para uma maior descentralização (cf. Quais os desafios dos temas teológicos atuais? São Paulo: Paulus, 2005, pp. 60-64).
Por que, então, tanto escândalo e tanto alvoroço com aquilo que Comblin falou ultimamente? Será que perdemos a capacidade de enxergar? Por que insistimos num comportamento de avestruz, recusando-nos a ver o que é tão visível? Por que duvidar da possibilidade de “politicagem e de conchavos” dentro da Igreja Católica? Por acaso não conhecemos a sua história para saber que ela sempre esteve cheia desses casos? Será que esquecemos que os escritores dos primeiros séculos do cristianismo a chamavam de “casta meretrix”, de “casta prostituta”? Será que chegamos a um nível tal de arrogância a ponto de achar que o atual sistema eclesiástico é tão perfeito a ponto de não mais precisar de reformas e nem de profetas para pregar a conversão da Igreja?
Comblin é um profeta que possui sensibilidade para perceber o que está acontecendo. E por isso fala sem medo e sem falsas contenções. Ele, enquanto ancião, é um verdadeiro modelo para as novas gerações de cristãos e de cristãs. Como o velho Eleazar (2Mc 6,18-31) prefere a morte, a perseguição e a calúnia do que trair suas próprias convicções. Não aceita fingir para escapar dos olhares mortíferos dos acomodados e incomodados. Recusa-se a ser tratado com benevolência e a trocar sua fidelidade por vantagens. Assim, “coerente com a sua idade e com o respeito da velhice, coerente com a dignidade dos seus cabelos brancos” (2Mc 6,23), prefere continuar firme em sua profecia. Como Eleazar, ele tem consciência de que o fingimento, em troca de certas vantagens e do “bom nome”, escandalizaria os mais jovens. Assim é para todos nós um exemplo honrado de fidelidade. Uma fidelidade diferente, é claro. Ele não pretende amar a Igreja mais do que os outros, como insinuou alguém. Apenas ama-a de um modo diferente, radical e corajoso. Um modo, aliás, que não se tem visto ultimamente, inclusive entre os anciãos, e do qual tanto precisamos em nossos dias.
José Lisboa Moreira de Oliveira (*)
(*) Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. Gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
Fonte: Adital, 28/03/11