CÓLERA SEMENTEIRA


Para alguns estudiosos das manifestações antissemíticas ocorridas na Alemanha durante o regime nazista, o que ocorreu nas primeiras horas de 10 de novembro de 1938 em todo III Reich teria tido como estopim fatos acontecidos há muito tempo, talvez até iniciado quase quatrocentos anos antes, em 1543, quando do lançamento da carta pastoral Dos Judeus e Suas Mentiras, de Martinho Lutero, onde ele recomendava que as sinagogas dos judeus “deveriam ser incendiadas e tudo aquilo que não queimasse deveria ser coberto ou manchado com areia, de modo que ninguém pudesse ver uma cinza ou uma pedra do que restou. E isto deveria ser feito em honra de Deus.” Seguramente uma semente funestamente açuladora, seguida à risca por Hitler e seus facínoras, que sob instintos animais buscavam destruir judeus, homossexuais e povos classificados como não-arianos.

Quem desejar conhecer melhor as brutalidades alemãs cometidas na chamada Kristallnacht, Noite de Cristal – onde se conta que, em 24 horas, mais de mil sinagogas foram incendiadas e destruídas, e 30 mil homens, entre 16 e 60 anos, foram presos e enviados para campos de concentração -, deve ler o livro-documentário de Martin Gilbert, um dos mais renomados historiadores britânicos. Em A Noite de Cristal – a primeira explosão do ódio nazista contra os judeus, Ediouro, 2006, Gilbert relata os momentos de terror acontecidos na Alemanha na data acima, onde milhares foram torturados e atormentados, mais de mil falecendo por não suportarem os sofrimentos. Uma Noite de Cristal organizada por tropas de assalto paramilitares, algumas trajando uniformes de camisas marrons, outras em trajes civis, todas elas orientadas para incendiarem sinagogas, lojas e residências hebraicas, saqueando e queimando móveis e livros em todas as cidades alemãs, inclusive Berlim, a capital.

Poucos dias antes, em 18 de outubro de 1938, mais de 12 mil judeus foram expulsos da Alemanha por ordem expressa de Hitler. Eram judeus nascidos na Polônia e que viviam legalmente na Alemanha há décadas. Todos receberam ordem de despejo numa única noite, com a permissão de portar uma única mala com pertences pessoais, sendo seus móveis, utensílios domésticos, livros, fogões, pratos e talheres apreendidos pelos nazistas e pelos próprios vizinhos dos banidos. Armas e baionetas foram utilizadas para transportarem os deportados até a fronteira polonesa, onde apenas quatro mil foram aceitos, os demais sobrevivendo sobre as pedras frias de uma estação fronteiriça, inúmeros também se valendo das precárias instalações dos estábulos das redondezas. Todos famintos, desolados, confusos e raivosos. Em poucos dias, cinco cometeram suicídio.

Em Munique, na véspera da Noite de Cristal, Hitler deu a ordem: “As manifestações deveriam ter permissão de continuar. A polícia deveria ser recolhida, posto que, desta vez, os judeus deveriam sentir uma amostra da ira popular”. Em seu diário, um dos animais nazistas, Goebbels, anotou: “Eu imediatamente dei as instruções necessárias à polícia e ao partido. Aplausos ensurdecedores. Todos correm instantaneamente aos telefones. Agoras, as pessoas vão agir”. De madrugada, multidões embriagadas principiaram a quebrar as vidraças das lojas judaicas, agredindo seus proprietários e colando panfletos insultuosos que diziam “Führer! Liberte-nos da peste judaica!!” Panfletos claramente confeccionados com dias de antecedência.

Segundo informações contidas no livro do Gilbert, os judeus constituíam comunidades estabelecidas na Alemanha há dois mil anos, ainda na época dos romanos. E já tinham dado demonstração de heroísmo pela Alemanha por ocasião da Primeira Guerra Mundial, quando doze mil tombaram em ação.

O jornal The Times comentou em um dos seus editoriais: “Nenhum propagandista estrangeiro interessado em denegrir a Alemanha diante do mundo poderia superar esta crônica de incêndios e agressões, de assaltos covardes a pessoas indefesas e inocentes, que desgraçou aquele país no dia de ontem”.

Para mim, não deveria haver conversa nem tolerância possível com tal tipo de ideologia. O nazismo é a única doutrina que condena à morte seres humanos pelo simples fato de serem judeus ou “seres inferiores”. Mareck Halter, consagrado filósofo judeu, diz que o nazismo é o mal absoluto e que um judeu jamais poderia ser adepto de tal filosofia política, posto que ela extrapola todas as tiranias e barbáries que a humanidade já conheceu.

Causa-me forte repugnância as tentativas revisionistas de atribuir o massacre dos judeus, na tirania nazista, a uma montagem ou a exageros publicitários. Alguns mínimos detalhes contidos no livro do Gilbert comprovam a selvageria que enlouqueceu a Alemanha: os judeus, ao serem arrebanhados e enviados aos campos da morte, pagavam pela passagem de trem que os conduziria às áreas de extermínio. E pagavam tarifa excursão, porque pelo regulamento das ferrovias, eles viajavam em grupo!!! E não para aí, a cafajestada: a estatal ferroviária cinicamente iniciava processos administrativos para reembolsar o dinheiro dos “excursionistas” que não mais voltariam. Cretinamente, no regime nazista, matar industrialmente não causava qualquer problema, muito embora não devolver o dinheiro dos “passageiros” fosse considerado uma postura antiética.

Vale a pena ler o livro, para melhor dimensionar a fúria animal nazista à época. Que tinha apoiadores, uns explícitos outros disfarçados, porque covardes, na sociedade mundial de então. E ainda hoje com sectários seguidores, inclusive na atual Câmara dos Deputados, Brasília, onde ainda cotinuam arrotando preconceitos e homofobias, valendo-se de uma impunidade que não mais deveria existir.

(Publicada em 04/04/2011, no Portal da Revista ALGOMAIS, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves