CLARICE, UMA ADMIRAÇÃO TARDIA
Fernando Antônio Gonçalves
Confesso um grave defeito pessoal: o de não entender bem poesia, por não apreender, na grande maioria das vezes, as inspirações dos autores. Mesmo assim, amo intensamente os poemas de João Cabral de Melo Neto, Manoel Bandeira, Ascenso Ferreira, Mário Quintana, entre tantos outros talentos brasileiros. Que me fazem sair de um apenas viver técnico, para vaguear, por instinto de sobrevivência, por outros mundos e tempos, inteirando mais minha imanência com uma transcedência que foi magistralmente classificada pelo teólogo Paul Tillich como Base da Nossa Existência.
Entretanto, num papo pra lá de multicultural com o meu irmão oftalmologista Saulo Gorensten, o domesticador dos meus olhos há mais de três décadas, fui presenteado com um dos livros de poesia de Clarice Lispector, por ele e a Rosanna muito admirada, eternizada em 1977, um dia antes do seu 57º aniversário.
De origem judaica, Clarice era a terceira filha de Pinkouss e Mania Lispector. A sua família sofreu perseguição durante a Guerra Civil Russa de 1918-1921. Seu nascimento ocorreu em Chechelnyk e ela chegou ao Brasil quando tinha apenas dois meses de idade, desembarcando em Maceió, março de 1922.
Clarice Lispector começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade do Recife, onde viveu parte da sua infância. Adulta, falava vários idiomas, entre eles o francês e o inglês. Além do iídiche, vivenciado no ambiente familiar.
Inúmeras reflexões suas são analisadas hoje nos grupos intelectuais que curtem literatura brasileira de muito bom calibre. Escolhi algumas:
1. E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano.
2. … uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.
3. Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
4. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.
5. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
A revista Shalom, n° 296, v.2, 1992, reproduz a última entrevista de Clarice Lispector, concedida para o jornalista Júlio Lerner da TV Cultura, janeiro de 1977. Na revista, Lerner descreve os preâmbulos da gravação: “Paro diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a mão e sou atravessado pelo olhar mais desprotegido que um ser humano pode lançar a um semelhante… Ela é frágil, ela é tímida, e eu não tenho condições para explicar que o problema do tempo elevou meus níveis de ansiedade. Clarice me apresenta Olga Borelli (ela não sabe que eu sei, sua melhor amiga), entramos e a conduzo ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente numa poltrona de couro de tonalidade café-com-leite. Clarice segura apenas um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores malditos são ligados. Clarice me olha, o setor técnico envia pelos alto-falantes o sinal agudo de mil ciclos. O olhar de Clarice me interroga, só disponho de uma única câmera, o olhar de Clarice suplica, Olga se ajeita numa lateral escurecida, chega Miriam, a estagiária do programa e fica encolhida e calada, o calor está ficando insuportável e o ar-condicionado não está ajustado, são apenas quatro e vinte, Clarice tenta me dizer alguma coisa mas não falo com ela, preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o hálito da fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora no estúdio uns 50 ou 60 graus, maldita TV, bendita TV do terceiro mundo que me possibilita estar agora frente a frente com ela, Clarice me olha melindrosa, assustada e seu olhar me pede para que a tranquilize…’OK, Juliooooo… tudo pronto’, a voz metálica vem da caixa dos alto-falantes. Peço a toda equipe para sair, cabo-man, iluminador, assistente de estúdio, agradeço, Clarice percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar atrás, peço silêncio total e depois de uns dez segundos ecoa um ‘gravandoooo’…Silêncio. Olga e Mirian na parte escura de um dos lados, Moacir escondido atrás da câmera, eu me posiciono ao lado da câmera para não aparecer, a fim de que o público não descubra minha impiedosa cara-de-pau e… Clarice. Solitária, no centro do estúdio…Não conversamos antes e disponho apenas de 23 minutos… Estou completamente desconcertado, fico um minuto em silêncio fitando Clarice. Estou oco, vazio, não sei o que dizer… Clarice me olha curiosa mas vigilante, defendida… Sou o senhor do castelo e – prepotente – guardo comigo a chave desta prisão… Ninguém pode entrar ou sair sem meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à minha autoritária vontade”.
Eis as partes mais significativas da entrevista, numa escolha intencional minha:
P. Clarice Lispector, de onde veio esse Lispector?
R. É um nome latino, não é? Eu perguntei a meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando uma outra coisa que parece uma coisa… “Lis” e “peito”, em latim. É um nome que quando escrevi meu primeiro livro, Sérgio Milliet (eu era completamente desconhecida, é claro) diz asssim: “Essa escritora de nome desagradável, certamente um pseudônimo…” Não era, era meu nome mesmo.
P. Nas raras entrevistas que você tem concedido surge, quase que necessariamente, a pergunta de como você começou, quando?
R. Antes de sete anos eu já fabulava, já inventava histórias, por exemplo, inventei uma história que não acabava nunca. É muito complicado para explicar essa história. Quando comecei a ler comecei a escrever também. Pequenas histórias.
P. Você poderia nos dar uma idéia do que era a produção da adolescente Clarice Lispector?
R. Caótica. Intensa. Inteiramente fora da realidade da vida.
P. Desse período você se lembra do nome de alguma produção?
R. Bem, escrevi várias coisas antes de publicar meu primeiro livro. Eu escrevia para revistas – contos, jornais. Eu ia com uma timidez enorme, mas uma timidez ousada. Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo. Chegava lá nas revistas e dizia: ‘Eu tenho um conto, você não quer publicar?’ Aí me lembro que uma vez foi o Raimundo Magalhães Jr. que olhou, leu um pedaço, olhou para mim e disse: ‘Você copiou isso de quem?’ Eu disse: ‘De ninguém, é meu’. Ele disse: ‘Você traduziu?’ Eu disse: ‘Não’. Ele disse: ‘Então eu vou publicar’. Era sim, era meu trabalho.
P. Clarice, a partir de qual momento você efetivamente decide assumir a carreira de escritora?
R. Eu nunca assumi. Eu nunca assumi.
P. Por quê?
R. Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questaão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo, consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional… para manter minha liberdade.
P. Como você esplica a Clarice Lispector voltada para a literatura infantil?
R. Começou com meu filho quando ele tinha seis anos de idade, seis ou cinco anos, me ordenando que escrevesse uma história para ele. E eu escrevi. Depois guardei e nunca mais liguei. Até que me pediram um livro infantil. Eu disse que não tinha. Eu tinha inteiramente esquecido daquilo. Era tão pouco literatura para mim, eu não queria usar isso para publicar. Era para o meu filho.
P. É mais difícil você se comunicar com o adulto ou com a criança?
R. Quando me comunico com criança é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com o adulto na verdade estou me comuicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil, não é?
P. Você acorda a que horas?
R. Quatro e meia, cinco horas eu acordo… Fico fumando, tomando café sozinha sem nenhuma interferência… Quando estou escrevendo alguma coisa eu anoto a qualquer hora do dia ou da noite, coisas que me vêm. O que se chama inspiração, não é? Agora quando estou no ato de concatenar as inspirações, aí sou obrigada a trabalhar diariamente.
P. Na sua formação como escritora quais aqueles escritores que você sente que realmente influenciaram, que marcaram?
R. Eu não sei realmente porque misturei tudo. Eu lia livro, romance para mocinhas, livro cor-de-rosa, misturado com Dostoievski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores que eu não tinha conhecimento nenhum. Misturei tudo. Fui ler, aos treze anos, Hermann Hesse e foi um choque, O lobo na estepe, ou da estepe. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora.
Para quem deseja conhecer melhor Clarice Lispector, duas indicações imperdíveis: Clarice, de Benjamin Moser, editora Cosac Naify, 2009; e Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib, Edusp, 2009
Uma mulher inesquecível, a Clarice Lispector, uma admiração minha muito tardia. Ela um dia escreveu “Viver não é vivível”. Uma intelectual com desconfortos d’alma. Verdadeira por derradeiro. Talento que alimenta saudades.
(Mini-ensaio publicado no site Diário de Engenho, Piracicaba, SP, 06.04.2011.