CIPOADAS BOAS


No aniversário da Melba, minha diária inspiração, fui apresentado ao Cacildo, setentão antenado de papo contemporâneo, que se revelou admirador do João Silvino da Conceição, irmão caminheiro de muitas léguas, que ele conheceu numa feijoada acontecida no Mercado da Madalena, palco de fidelíssimas bebericações sabáticas.

Confissão do Cacildo: o que mais o alegrava era quando ouvia o JSC baixar o cacete nos boçais do pedaço, principalmente naqueles que, sem muitas eiras e quase nenhuma beira, arrotavam grandezas mil em voz alta, como se portassem uma coroa de ouro enfiada por sobre orelhas nunca humanas, em cabeças de enxergamentos próximos à nulidade, quase todas elas sem causar as mínimas empatias nos seus derredores.

Depois de uns bons goles de uma louríssima primeiro mundo, tomados em copos apropriados, o Cacildo contou o que o JSC tinha narrado num dos seus últimos papos. Seguinte: médico pernambucano, já amplamente reconhecido Brasil inteiro, tinha por cunhado um profissional de Ciências Humanas muito complexado, que se ocultava atrás de uma máscara fantasiosa de “inteligênio”, não suportando o conceito adquirido do médico após anos de uma vivência profissional vitoriosa, algumas condecorações recebidas e participações aplaudidas em inúmeros congressos. Que, comparados com os anos de trabalho do cunhado, se encontravam numa dianteira anos-luz, o que ampliava o rancor de um pelo outro. Um dia, tem sempre um dia para arrebentar a boca do balão, o cunhado telefona para a residência do médico, que morava só com esposa e três filhos, casamento sólido de mais de três décadas. Atendendo, o médico ouviu o seguinte: – Fulana está? Identificando a voz e sem receber um boa noite do pobre coitado, o médico retrucou: – Quem deseja falar com ela? Uma excelente oportunidade para o desmonte da boçalidade. Que não foi devidamente compreendida do outro lado da linha, que respondeu: – É Sicrano, o irmão dela. No que o médico respondeu: – Um instante, senhor, que ela irá atendê-lo.

O ocorrido acima comprova o quanto estamos sujeitos a bobajadas de funcionários, amigos, estranhos e parentes dos mais diversos graus. Às vezes, imagino que tais “complicados” se consideram tão puros, tão distanciados do cotidiano brasileiro simples e prazeroso, que se sentem urinando água mineral de fonte a mais cristalina possível.

O Recife está a necessitar de mais “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “com licença”, “por favor” e “muito obrigado”. Para voltar a ser uma sociedade mais alegre e menos “pedantocrática”, com menos reis nas barrigas e mais cidadania para todos. Para que recifenses e recifensizados que nem eu, possam conviver com três tipos de fome, usando a expressão famosa de Sigmund Freud: a do conhecer, a do prazer e a da alegria. O coquetel delas três, adequadamente dosadas as suas partes a depender da ocasião, poderá em muito favorecer uma saudável ampliação das convivialidades saborosas, tal e qual àquela vivenciada com o Cacildo, um sempre de muito bem com o mundo.

Ao profissional cunhado do tal médico, mais boçal que profissional, recomendaria mais leituras não-técnicas de bom calibre existencial. Para que ele possa assimilar a recomendação do Rubem Alves: “É inútil viajar para outros lugares se não conseguirmos desembarcar de nós mesmos”.

(Publicado no Jornal do Commercio, Recife, Pernambuco, 16.11.2012)
Fernando Antônio Gonçalves