CINISMO E IMPUNIDADE


Estamos vivenciando dias de turbulências significativas. E o fenômeno é universal, com características mais acentuadas nos países menos desenvolvidos, detentores de imaturidades múltiplas em quase todas os seus setores político-administrativos. E a mais densa das imaturidades é a imaturidade cognitiva, matriz mãe de quase todas as demais, posto que uma das causas primeiras de todo atraso civilizatório.

Nós, como civilização que ainda ensaia seus primeiros passos, estamos ainda nos posicionando numa contemporaneidade embasada num aprendizado efetivado há muitas décadas. Tornamo-nos inflexíveis diante das lições apreendidas quando ainda adolescentes, num contexto outro diferenciado.

Inúmeros perderam a capacidade de acompanhar os fatos históricos da humanidade, por acomodação, desconhecimento, preconceito, conivência ou conveniência. Desapercebidos das funções cívicas que se postam inerentes às estratégias de transformação contemporâneas, arrefecendo os ânimos dos mais novos, teoricamente os mais aptos para captar os sinais de toda mudança.

Os acontecimentos estão se processando numa rapidez espantosa, o que faz aumentar enormemente a responsabilidade daqueles que detêm comandos decisórios na gestão do setor público, por inúmeros tido e havido como uma área de reconhecida lerdeza. O serviço público brasileiro, ainda muito distanciado dos padrões mínimos de excelência internacional, não é nem serviço nem é público. Não é serviço pelo mau funcionamento e por elaborar produtos de ínfima categoria. Além de sonegar informações aos seus usuários – os mais prejudicados os usuários de baixa renda –, ele não se mostra motivado para deixar de funcionar emperradamente, sempre atrelado a inúteis rotinas. E o serviço público também não é público por favorecer sempre uma minoria de há muito já favorecida pelos seus níveis de renda elevados.

Hoje, a população está definindo serviço público como uma propriedade particular de alguns poucos, absolutamente despreocupados em beneficiar os mais carentes. E os setores públicos mais distanciados da grande maioria populacional são os setores de Justiça, Segurança, Saúde e Educação, segundo as mais recentes pesquisas de opinião pública.

Uma das chagas da administração pública brasileira é o clientelismo, uma outra moeda do populismo. Com a prática do clientelismo, três coisas acontecem, numa causação circular embrutecedora: avilta-se o direito de todos, elimina-se a participação de todos e atrofia-se a consciência de todos. Tal mecanismo, triplamente perverso, termina por induzir as pessoas que se utilizam dos serviços públicos a não mais se aperceberem como cidadãs, desconhecendo seus principais direitos: o de participar, o de ter bens, o de ter dignidade própria e o de poder consolidar seus próprios caminhos. Para retornar ao seu leito normal, o serviço público deveria estar politicamente direcionado para a efetivação de três posturas estratégicas: a) a de remediar, na urgência, o que está mais precário; b) o de estabelecer linhas complementares de ação que viabilizem uma maior eficácia das áreas mais diretamente relacionadas com o bem estar social da população mais carente (Educação, Saúde e Segurança); c) o de instituir e/ou incentivar programas comunitários, pelas próprias comunidades sempre gerenciados, que favorecessem alcançar mais rápido da consciência cidadã.

Duas lógicas muito perversas embasam o conceito que a sociedade brasileira tem do Serviço Público: a) a de que é praticamente impossível sua democratização; e b) a da burocratização sempre necessária, um fim em si mesmo, com vida própria e sobrevivência garantida. Com isso, o usuário vê as mudanças necessárias como um fato impossível de acontecer, restando a crença de que sem esse serviço público, por pior que ele possa parecer, as coisas ainda seriam para ele mais desfavoráveis.

Todo servidor público medíocre tende a ser autoritário, pouco comunicativo e de linguagem hermética. Sente-se dono da verdade, não se incomodando se as orientações ininteligíveis, as mais estapafúrdias possíveis, irão pingueponguear os usuários para cima e para baixo, deixando-os com a sensação de que eles é que estão sem a mínima capacidade de entender os procedimentos processuais.

Nesta ainda ingênua sociedade brasileira, é preciso ampliar a noção acerca dos nossos erros e acertos, das nossas omissões e fragilidades comportamentais, das indecências sociais que redundaram no atual estado de coisas. Necessitamos compreender definitivamente que um pequeno buraco pode afundar um grande navio. E o barco é um só, e está à deriva, necessitando de reparos imediatos e profundos, sem os quais não chegará a porto algum.

Também uma capacidade associativa está a exigir recondicionamentos mais consequentes, a diferenciar as coalizões necessárias das associações espúrias, demagógicas, populistas e eleitoreiras. E a classe privilegiada, cada vez engolfada pelos desacertos do cotidiano, precisa voltar a apreender melhor a realidade social do país, redimir-se dos erros cometidos, preparando-se para novos erros e acertos, os primeiros sendo minimizados pela ampliação de uma criticidade imprescindível, amplamente solidária.

Muitos imaginam que os mais responsáveis são aqueles absolutamente certinhos. Não é verdadeiro. Responsáveis são aqueles que sabem que estão caminhando com seus erros e com seus acertos. Todo responsável tem a consciência plena daquilo que Raul Seixas, hoje menestrel na eternidade, chamava “ser uma metamorfose ambulante”. Porque o bonde sempre está em movimento e com uma velocidade cada vez maior. E quando as pessoas perdem esse bonde e começam a olhar para os ensinamentos adquiridos há décadas passadas, sem qualquer reoxigenação, elas pecam por também não querer ser uma metamorfose ambulante. O educador baiano Anísio Teixeira, a propósito de ser uma “metamorfose ambulante”, sabia posicionar-se admiravelmente bem: “Eu não tenho responsabilidade nenhuma com as minhas ideias. Eu tenho, sim, uma responsabilidade com a verdade”.

Quem tem esse grau de maturidade sabe caminhar. Quem não tem, apenas continua sobrevivendo, atrelado aos me-disseram mais antissocialmente mundanos.

(Publicada em 23.06.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves