CENSURA DESMASCARADA


Presente enviado pelo meu único irmão, me diverti à bessa com o livro Maria Erótica e o Clamor do Sexo – Imprensa, Pornografia, Comunismo e Censura na Ditadura Militar, do jornalista e pesquisador baiano radicado na paulicéia Gonçalo Junior, já autor de vários livros, colaborador durante muitos anos da Gazeta Mercantil, São Paulo. Escrito para todos aqueles que imaginavam ridícula a censura dos 21 anos de militarismo que dominou o Brasil, com os civis que deles se aproveitaram à mancheia, também exercida sobre os grandes jornais e periódicos de então.

O livro trata ainda sobre a censura exercida sobre a chamada imprensa alternativa – Pasquim, Movimento e Opinião, entre outros -, trazendo manobras inteligentes sobre como driblar os bípedes tridentinos que cumpriam ordens de “otoridades” que se imaginavam a palmatória do mundo. Uma das estratégias mais notáveis diz respeito a intensa troca de correspondência mantida, de 1971 a 1977, entre o editor paulista Minami Keizi, proprietário de duas editoras, e os chefes da censura em Brasília. Diferentemente de outros que, indignados, bufavam e rasgavam as ordens de censura, Keizi guardou cuidadosamente as correspondências recebidas numa pasta muito bem protegida. Um acervo que possibilitou resgatar a trajetória da falência das suas revistas de quadrinhos e fotos com nudez erótica, onde até a norte americana revista Playboy, no Brasil editada pela editora Abril, somente teve autorização de circular com o nome de Revista do Homem, o nome original sendo permitido três anos depois.

No livro, na página de identificação catalográfica, uma explicação vingativa: “esta é a história de pequenos editores, desenhistas e roteiristas de quadrinhos quase anônimos, que, algumas vezes, fizeram a censura de boba por pura sacanagem, em todos os sentidos”. E na página seguinte, uma nota do então Ministro da Justiça de Médici Alfredo Buzaid, datada de 1970: “o nosso propósito é preservar a integridade da família brasileira, que guarda tradição de moralidade, combatendo o processo insidioso do comunismo internacional que insinua o amor livre para desfibrar as resistências morais de nossa sociedade”. Uma idiotice assinada com a maior das seriedades.

Os exemplos de bobajadas moralistas são inúmeros. Em 1970, por exemplo, horas antes de iniciar o famoso baile de carnaval do sábado no luxuoso Hotel Copacaba Palace, policiais invadiram o edifício com a alegação de ter recebido denúncia sobre a decoração, que estava atentatória à moral e aos bons costumes por conter imagens de mulheres com seios à mostra. Impasse somente resolvido através de tarjas pretas, muito embora o fato tenha sido encarado pelos foliões como uma baita gozada dos organizadores da festa contra a censura daquela época.
Naquele ano, em 6 de fevereiro, o decreto 1.077 detalhava como seriam aplicadas as medidas censoriais: cada editor, distribuidor e importador de livros e revisas era obrigado a levar, no prazo máximo de 72 horas antes da distribuição, três exemplares da publicação para “avaliação” prévia dos censores. Alguns dias depois da publicação do decreto, foi divulgada o primeiro Index Livrorum Proibitorum: 126 títulos, “entre os quais as que traziam fotos e textos eróticos, histórias em quadrinhos, fotos de novelas e humor picante”.

No livro muito bem documentado do Gonçalo Junior, um exemplar que deveria ser arquivado nos documentos históricos de combate à ditadura militar, inúmeros fatos bem retratam o nível das ridicularias cometidas. Uma delas, por exemplo, é o Ofício Nº 1635/AERP, do gabinete do presidente da República, escrito por um assessor do general Octávio Costa, datado de 27 de setembro de 1971 e dirigido ao diretor Waldemar de Souza, da editora Abril. O documento continha uma queixa direta contra um dos gibis editados: “Tendo em mãos o número 225, do mês de julho da revista Mickey, editada pela editora Abril, sob as responsabilidade de Vossa Senhoria, cumpro o dever de dizer-lhe o nosso desagrado pela inserção, à página 41, do anúncio de ‘Sylvapen’, sob todos os pontos de vista lamentável”. De que se tratava? Uma propaganda de uma caneta colorida, que trazia a seguinte mensagem: “Qualquer um deles (estojo) sabe no bolso de sua camisa, porque é do tamanho de um maço de cigarro”. O general achou perigosa a referência ao tabaco… O assunto foi referência do processo nº 60725 MJ, de 20 de outubro de 1971, aberto pelo Ministro da Justiça contra a editora, posto que estaria “atentando” contra os bons costumes.

Para se ter uma ideia da cretinice censorial, em outubro de 1976 uma entrevista dada pelo Jimmy Carter, então candidato democrata à presidente dos Estados Unidos, à Playboy americana, teve parte dela censurada quando da publicação na Payboy edição brasileira. Um bem caracterizado típico caso de censura equina.

O livro do Gonçalo Junior traz ainda, como anexos, na íntegra, as leis e decretos censoriais da época, bem como extensa bibliografia sobre a matéria e os múltiplos depoimentos. Um livro histórico sobre a ditadura militar a partir da censura ao sexo, ou de como se desenvolveu uma prática debilóide que associou, numa época de plena escuridão, erotismo a comunismo internacional.

(Publicada em 14.10.2010, no Portal da Globo Nordeste, blog BATE & REBATE)
Fernando Antônio Gonçalves