CARTAS DE MUITAS VERDADES


Diante do acanalhamento do Congresso Nacional, seus parlamentares despudoradamente concedendo aumento em seus proventos e benefícios, quando até hoje não aprovou uma legislação preventiva anti-enchentes; com a impunidade campeando nos noticiários, desmoralizando os códigos punitivos vigentes; e com a desvirilização cívica de parte substantiva de uma sociedade hedonista, oportunista e consumista, que há muito não dá a mínima atenção aos brados dos que ainda possuem decência e responsabilidade social, é por demais salutar repetir à exaustão a reflexão de um magistrado norte-americano, William O. Douglas, válida para todos os povos e nações: “O cair da noite não acontece de uma só vez, nem a opressão. Nos dois casos, há um crespúculo em que tudo parece continuar igual. E é durante esse crespúculo que todos nós precisamos ficar muito atentos às mudanças no ar – por mais sutis que sejam -, antes que nos tornemos vítimas involuntárias da escuridão”.

A declaração se encontra no livro O Fim da América, de Naomi Wolf, RJ, Record, 2010, ela consultora política e advogada de causas feministas, também integrante de um movimento democrático que busca defender o cumprimento das leis nos Estados Unidos. Um conjunto de cartas enviadas a um jovem norte-americano, diante de algumas escabrosidades cometidas na grande nação do norte durante os últimos anos, principalmente na gestão de George W. Bush, o mais debilóide presidente da história dos Estados Unidos, desde os Fundadores.

Nas suas cartas, Naomi Wolf conclama a sociedade a não baixar a guarda, a ler mais sobre as atrocidades cometidas ao longo do século XX, alertando para a atual rearrumação das forças retrógradas diante do avanço dos direitos humanos e sociais em todo mundo. E ela aponta as “coincidências” existentes entre algumas animalidades cometidas na Administração Bush e as atrocidades cometidas durante o famigerado III Reich, de ideário ainda não erradicado em contemporâneas mentes mórbidas, inclusive brasileiras e parlamentares.

Eis exemplos citados pela autora: 1. Após o 11 de setembro, com normas sobre transporte de líquidos em viagens aéreas, uma jovem mãe, em Long Island, foi obrigada a beber três garrafas cheias de seu próprio leite, fato assemelhado ao praticado por alemães da SS, que fizeram Wihelm Sollmann, um líder social-democrata, beber óleo de rícino e urina; 2. Na era Bush, seus porta-vozes se referiam aos Estados Unidos como “a Pátria”, tal e qual a expressão “Heimat” (“a pátria”), relembrada pela memorialista Ernestine Bradley, que cresceu na Alemanha nazista; 3. Prisioneiros de Guatánamo sendo obrigados a despejar o Corão em vasos sanitários, tal e qual a Gestapo fizera com os judeus, quando os obrigava a limpar privadas com seus filactérios sagrados, os tefilin; denúncia da Anistia Internacional sobre interrogadores americanos que atormentavam os prisioneiros do Iraque tocando heavy metal em volume máximo em suas celas. Idêntico procedimento ao praticado pela Gestapo, quando infernizou o primeiro-ministro austríaco Kurt von Schuschnigg na prisão, deixando rádios ligados no máximo, durante dias e noites. Para não citar, aqui, declaração imbecilizante do próprio Bush, que dizia “os prisioneiros da bacia de Guantánamo podiam ser tratados duramente porque não eram beneficiários da Convenção de Varsóvia”, recomendação idêntica feita pelo Reich aos soldados alemães na Rússia, “que tratassem o inimigo com brutalidade especial, porque eles não eram beneficiários da Convenção de Haia”.

Relembro dois posicionamentos do poeta Fernando Pessoa, no aguardo do lançamento da análise do amigo Zé Paulinho Cavalcanti sobre o lusitano. O primeiro: “Por vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua prosperidade comercial, coisas secundárias e por assim dizer físicas nas nações; tem de se entender a sua exuberância de alma, isto é, a sua capacidade de criar, não já simples ciência, o que é restrito e mecânico, mas novos moldes, novas idéias gerais, para o movimento civilizacional a que pertence”. O segundo, dirigido especialmente para aqueles que se imaginam “em cima” porque deixaram de ser “onibuseiros”: “O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela, em segui-la mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz”. Cada leitor é livre para perceber onde este Fernando, reproduzindo aquele Fernando, deseja aportar, pondo a rodilha nos quengos dos identificados da sua preferência.

Diante da tragédia acontecida na área serrana do Rio de Janeiro, atingindo todas as classes sociais, desmascarando verbas concedidas que não foram devidamente aplicadas, nunca é demais reproduzir o pensar do antropólogo Darcy Ribeiro, saudoso vice-governador dos cariocas: “inteligência transcende posicionamentos políticos, integridade analítica independe de cores partidárias, divergir com honestidade se posta acima dos alicerces do cotidiano convivencial. Lição memorável para todos os “bundões”, que costumam aplaudir tudo que os chefes fazem, lascando o pau nos situados na outra margem do rio, como se erros e omissões não existissem nas duas margens da correnteza.

A qualidade dos serviços públicos brasileiros, alguns deploráveis no trinômio educação-saúde-segurança, deveria cumpriu alguns balizamentos: 1. Descobrir o jeito de caminhar comunitariamente; 2. Organizar equipes sem fricotagens luxuosas; 3. Divulgar amplamente como se efetivará o jeito de caminhar; 4. Compreender bem as margens possíveis da intervenção pública; 5. Selecionar as ações prioritárias; 6. Planejar sem delongas nem milongas, nem afobamentos eleitoreiros; 7. Executar o planejado com segurança e viabilidade; 8. Verificar continuadamente o que está sendo executado; 9. Agir sem denodo para corrigir as distorções e os abusos porventura praticados; 10. Punir exemplarmente os que descarrilarem, inclusive os salafrário de colarinho branco.

Oposição é coisa séria e deve ser exercida. Nhem-nhem-nhém fuxicoso é outra coisa. O país começa a diferenciar opositor sério de simples pau-mandado histérico.
PS. Diante dos saques feitos por criminosos nas catástrofes do Rio de Janeiro, fico às vezes relembrando algumas “execuções comunitárias” efetivadas no passado.

Fernando Antônio Gonçalves é professor universitário e pesquisador social
(Publicada em 27.01.2011, no Portal da Globo Nordeste, blog BATE & REBATE)