CALIDOSCÓPIO DE VIVÊNCIAS


Vez por outra sonho com uma instituição mundial que pudesse revelar aos mais jovens, periodicamente e de forma preventiva, as atrocidades cometidas pelos assassinos de multidões, entre os quais Adolf Hitler e Josef Stalin, responsáveis maiores pelas atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Para isso, um livro muito me ajudou a entender melhor por que seres humanos são levados a sucumbir aos imperativos do mal, vitimando inocentes e indefesos, milhões de crianças inclusive.

Um levantamento bibliográfico feito por um físico amigo de longa data, hoje radicado nos arredores de Paris, me proporcionou um olhar mais aguçado sobre o assunto. Entre os indicados, o livro Trauma Alemão – Experiências e Reflexões 1938-2000, Bertrand Brasil, 2007, da escritora Gitta Sereny, nascida em Viena, 1923, que foi estudante na Áustria, Inglaterra e França, testemunhando a Blitzkrieg nazista arrasar exércitos aliados.

No livro, a autora mostra que, apesar das conquistas políticas e sociais da Alemanha após 1945 e da prosperidade econômica que a acompanhou, o conhecimento dos horrores cometidos em nome do seu povo permanece presente na mente de todas as gerações até hoje, como uma ferida aberta, não de culpabilidade pessoal, mas de responsabilidade histórica, alterando o próprio caráter da gente alemã. Ela indaga com aguda curiosidade: “por que os seres humanos são levados, amiúde e tão prontamente, a abraçar a violência e a amoralidade?” Explicita, no seu texto, os dois mecanismos utilizados pelas tiranias para perverter os espíritos humanos: idealismo e a capacidade de indução massiva.

Muito recentemente, a imprensa brasileira noticiou exemplo notável de um binômio que poderia ser denominado coragem cidadã x frouxidão escapista. Aos leitores, basta a reprodução das posturas envolvidas: “As autoanistias, dentro do direito internacional, não valem. Se nós estamos de acordo com isso, nós vamos ter, sim, de recomendar que esses casos sejam judicializados” (Rosa Cardoso, Comissão Nacional da Verdade), a primeira, uma exemplar postura cidadã. A segunda apenas ratifica procedimentos anteriores: “Essa não é a linha do governo. Nós respeitamos a opinião e o julgamento que eles (membros da comissão) tenham, mas o governo não estimulará nenhuma punição nem a revogação da Lei da Anistia” (Celso Amorim, Ministro da Defesa).

Só para efeito de comparação lá e cá, guardadas as devidas proporções: os tribunais da Alemanha Ocidental, embora tenham julgado e condenado 6.494 pessoas por crimes de guerra, das quais 13 receberam a pena de morte e 166 a de prisão perpétua, ainda trabalhavam, em 1996, 4.002 processos, estando, ao final do século passado com 52 inquéritos judiciais ainda em andamento, analisados por uma equipe de 25 funcionários especializados.

Lamentavelmente, as atuais Comissões da Verdade brasileiras, federal e estaduais, possuem uma diminuta operacionalidade investigatória. Milhares de documentos foram destruídos por mãos hoje integrando, fingida ou oportunisticamente, a base aliada governamental, o passado de suas atrocidades animalescas sendo criminosamente jogado para debaixo dos tapetes da História. Muito embora, esmiuçadas pesquisas contemporâneas estejam revelando as barbaridades cometidas para com os torturados e perseguidos pelos ditadores do regime militar iniciado em 1964. Elas parecem transmitir, aos combatentes dos vexaminosos ilícitos praticados, balizamentos comportamentais de Sun Tzu, enumeradas no seu livro A Arte da Guerra: aprender a lutar; mostrar novos caminhos, agir corretamente, conhecer bem os fatos, estar preparado para o pior, jamais complicar, nunca recuar, atuar sempre melhor e em equipe. Enaltecendo o que nunca deverá ser esquecido e que foi ensinado nas escolas egípcias, por volta dos anos 1.500 a.C.: “A verdade é grande e sua eficácia é duradoura. A malfeitoria nunca levou um empreendimento a bom porto”. Nem nos ontens, tampouco nos tempos contemporâneos, a começar pelas obras que permanecem inacabadas, bilhões de reais em destinos incertos e não mais sabidos.

Embora conservando meu ceticismo no tocante à punibilidade exemplar dos que exilaram, cassaram, torturaram e mataram durante o último regime ditatorial brasileiro, não creio ser demais reproduzir a advertência de Walter Benjamin, para nos precaver de futuros descaminhos e fingimentos apregoados como democráticos: “incapaz de compreender a essência da História, que ele concebe como um arquivo morto de fatos imutáveis, o homem fica prisioneiro do mito e sua visão do novo é no fundo uma reiteração obsessiva do sempre”.

Vivemos tempos de lutas contínuas entre os que buscam a qualquer preço não revelar os ilícitos criminosos passados e os que buscam elucidar desaparecimentos e desventuras, respaldados numa reflexão sempre oportuna de Augusto Cury, médico psiquiatra, cientista e escritor de nomeada: “Eu não me curvaria diante de uma celebridade ou autoridade política, mas curvo-me diante dos educadores, especialmente dos professores de história e sociologia, que sabem que uma sociedade que não conhece sua história está condenada a repetir seus erros no presente e expandi-los no futuro”.

As falsificações e os embustes necesitam ser detalhadamente expostos e explicados, para se entender cada vez mais as animalidades praticadas aqui, como também na Argentina, na Alemanha e em Guantanamo. Mudar de assunto significa fugir do essencial, mascarando as atrocidades perpetradas que deveriam ser exemplarmente punidas nos quatro cantos do planeta, inclusive em solo brasileiro.

(Publicada em 27.05.2013, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuc
Fernando Antônio Gonçalves