CAIXA PRETA VATICANA


Algumas surpresas aconteceram pelo fato do papa Francisco ter ido morar fora do Palácio Apostólico, no Vaticano. Nada demais para quem sempre foi identificado como religioso de estilo despojado, que vivia num quarto atrás da Catedral Metropolitana, quando cardeal em Buenos Aires. Tendo recusado ainda o crucifixo de ouro usado pelos papas anteriores, optando por um de aço, também rejeitou o manto vermelho decorado de peles, dando como desculpa que o carnaval já tinha acabado. E os seus sapatos são simples o bastante para diferenciá-los em muito das sapatilhas vermelhas encomendadas pelo seu antecessor. Recusou a limusine blindada, preferindo um veículo comum, tendo ainda pago pessoalmente a hospedagem no hotel que o acolheu antes do conclave. Muito costumeiro em realizar pessoalmente chamadas telefônicas, como a que fez para a banca da Praça de Maio, em Buenos Aires, para cumprimentar o jornaleiro, seu amigo de muitos anos, agradecendo as gentilezas prestadas.

Para a decisão de morar fora do Palácio Apostólico, talvez o papa Francisco tenha recordado três fatos. O falecimento por demais surpreendente do papa João Paulo I, até hoje uma dúvida atroz nos corações mais céticos. Segundo, o que aconteceu na noite de 4 de maio de 1998, uma segunda-feira, quando foram encontrados mortos, em seu alojamento, os corpos do comandante da Guarda Suíça, coronel Alois Estermann, o da sua senhora, Gladys Meza Romero, ex-modelo venezuelana, primeira policial do seu país, deixando posteriormente a América Latina para se estabelecer em Roma, como arquivista da embaixada venezuelana na Santa Sé, e o do cabo Cédric Tornay, 23 anos, que havia largado seus pagos na Suíça, três anos antes, para fazer o juramento de recruta na famosa corporação protetora do pontífice. E terceiro, o assassinato, cinco meses antes da morte do coronel, de Enrico Sini Luzi, um Criado de Sua Santidade João Paulo II, golpeado até a morte com um candelabro antigo, em sua própria casa, fora dos muros da cidade-estado, vestido apenas com uma cueca, após provável encontro homossexual havido com um garoto de programa romeno.

O noticiário de tais acontecimentos, analisados pela imprensa sob evocação dos atos criminosos praticados pelos Bórgias, talvez tenha influenciado o papa Francisco na escolha dos seus novos aposentos. As manchetes, no caso do coronel, tinham sido assustadoras: Sangue no Vaticano (La Republica), Massacre na Guarda Suíça (Corriere della Sera) e Três Corpos e uma Arma no Vaticano (La Stampa). Neles aventavam-se as mais disparatadas hipóteses: traição, ciúme, seitas secretas, fanatismos, Opus Dei, entre mil e uma outras conjecturas. Segundo John Follain, jornalista à época que fazia a cobertura do Vaticano, “nenhum evento no coração da Igreja Católica provocou tantas interpretações diferentes em um espaço de tempo tão curto.” Dele é a autoria de um livro deveras impressionante: Segredos do Vaticano, SP, Seoman, 2005. Onde ele rastreia a morte do casal e do jovem guarda suíço, classificada como um dos maiores escândalos públicos a abalar a Igreja Católica, desprezando as explicações oficiais simplistas apresentadas. Ele analisa com minudências um elenco fantástico de participantes, desde um papa já bastante alquebrado e sofrido, até um padre misterioso punido pelo Vaticano, além da poderosa seita Opus Dei. E pesquisa ainda as atividades do porta-voz do papa, solteirão espanhol Joaquin Navarro-Valls, de gestos suaves, e de Ângelo Sodano, secretário de Estado, conhecedor de muitas “estórias” além da História e que muito apreciaria ascender um dia o trono papal.

Enterrado solenemente, o coronel Estermann foi logo desmascarado, quando o jornal alemão Berliner Kurier, dois dias mais tarde, publicava reportagem revelando que o coronel era agente da polícia secreta da Alemanha Oriental, conhecida e temida organização, rival da KGB, ostentando o codinome “Werder”.

O livro do Follain é o resultado da indignação da mãe do cabo Cédric Tornay, Muguette Baudat, que desejava explicações convincentes sobre a morte do filho, tratado como traficante louco após o encerramento das investigações vaticanas nada transparentes, embora guardadas sob sete chaves nos arquivos da cidade-estado. Inclusive sobre uma carta recebida do filho, com detalhes não verdadeiros, no envelope contendo o seu telefone, informação jamais explicitada nas correspondências anteriores. Aclaramentos que ela buscava, entre outros questionamentos, apesar das resistências impostas por duas instituições secretas, a própria Igreja e a Guarda Suíça. Inclusive a própria reconstituição do acontecido.

Como leitor atento dos noticiários que envolviam assuntos pontifícios, o papa Francisco, quando eleito, certamente se encontrava por dentro de tudo que havia acontecido nos anos anteriores. E certamente tomou suas precauções, para que o mundo vaticano percebesse que santidade e simplicidade não devem ser confundidas com bobices e ingenuidades. Como muitos ainda imaginam que era Francisco de Assis, uma inteligência prodigiosa a serviço do Povo de Deus. Um monge radicalmente humilde, de sagacidade analítica exemplar, que também conhecia as patifarias da sua época.

(Publicada em 15.07.2013, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves