CAÇADA PEDAGÓGICA


Em Atenas, 1967, Peter Malkin recebeu um telefonema de Avraham Shalom, diretamente de Tel Aviv, comunicando o internamento de sua querida mãe. Embarcando sem delongas, em poucas horas encontrava-se à cabeceira daquela que muito amava. Os olhos dela estavam cerrados, o rosto extremamente pálido. Sem qualquer reação. Às vésperas da eternização.

Reunindo todas as suas forças, Malkin cochichou ao seu ouvido:
– Mamãe, quero lhe dizer uma coisa muito importante para a senhora. Fiz o que prometi. Peguei Eichmann.

Nenhum movimento aconteceu naquele leito hospitalar. Há sete anos, precisamente em 11 de maio de 1960, Peter Malkin tinha agarrado Adolfo Eichamnn, o terrível carrasco nazista, numa rua chamada Garibaldi, a poucos quilômetros de Buenos Aires, capital da Argertina, numa operação organizada magistralmente pelo Mossad, o serviço secreto israelense.

Paul Malkin tinha jurado jamais revelar seu feito, muito embora não suportasse a ideia de ver sua mãe partir desconhecendo a sua bravura. Insistiu mais uma vez:
– Mamãe, Fruma foi vingada. Foi o irmão dela quem capturou Adolf Eichmann, aquele que foi julgado e enforcado na prisão de Ramia, bem perto daqui, em 1º de junho de 1962.
– Ela não pode ouvir mais nada, disse uma outra senhora bem idosa, também internada na mesma enfermaria coletiva, impaciente com a insistência do visitante.

Quando Malkin já se encontrava com as esperanças quase findas, eis que sentiu uma mão sobre a sua, apertando-a ternamente.
– Entendeu?, perguntou ele com emoção.
Os olhos dela se abriram, direcionados para ele:
– Sim, disse. Entendi, meu filho.

O fato acima integra, com outras narrações notáveis, um livro recentemente editado pela Objetiva, intitulado Caçando Eichmann: como um grupo de sobreviventes do Holocausto capturou o nazista mais notório do mundo. De Neal Bascomb, um conceituado jornalista investigativo, também autor do muito premiado O Encouraçado Potemkin.

Na confecção do livro, Bascomb entrevistou ex-soldados nazistas, extremistas de direita em Buenos Aires e agentes do Mossad, ainda descobrindo, na Alemanha, um antigo relato de Eichmann sobre sua fuga, além de dialogar com tripulantes do histórico voo da El Al entre Buenos Aires e Tel-Aviv. Que na vinda, às 7h05 de 19 de maio de 1960 tinha pousado nos Guararapes, no Recife, para reabastecimento, sua partida acontecendo três horas e meia depois, após pagamento de suborno ao então comandante do aeroporto. Tudo devidamente narrado num dos capítulos mais eletrizantes do livro.

O Prêmio Nobel da Paz 1986 Elie Wiesel, com mais de 50 livros dedicados a resgatar a memória do Holocausto, autor de Noite, seu livro mais conhecido (1955), judeu nascido na Romênia, sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald e que compareceu como repórter ao julgamento de Eichmann, ressaltou que “a história judaica tinha imaginação tremenda. Alguns judeus o pegaram e o levaram à justiça. Não o mataram, o que poderiam ter feito em Buenos Aires. Não, eles o levaram ao Estado livre e soberano de Israel, onde homens pudessem lhe servir de juízes. O julgamento foi quase tão importante no campo da educação quanto no campo da justiça. Foi importante para que a juventude israelense soubesse o que aconteceu, de onde vinham. E foi isso o que o julgamento de Eichmann realmente fez. Mas não só em Israel; a verdadeira guinada foi a consciência do mundo em relação à tragédia do povo judeu”.

No livro, a pusilanimidade de Adolfo Eichmann se agigante por ocasião de sua captura e anda mais em seu julgamento, quando ele, revelando ser apenas “um mero dente na engrenagem, onde qualquer pessoa teria feito o mesmo”, propôs enforcar-se em público e assumir todos os pecados nazistas. Uma pretensão negada pelo tribunal, para quem ardilosamente apenas desejava exibir-se como portador de sentimentos elevados, segundo explicação dada pela notável escritora Hannah Arendt em 1964, quando analisava algumas controvérsias desencandeadas por ocasião do lançamento do seu excepcional livro Eichmann em Jerusalém.

O Caçando Eichmann, de Neal Bascomb, é publicado no Brasil em momento muito oportuno, quando marginais de classe média alta praticam barbaridades contra cidadãos indefesos e a bandidagem no Rio de Janeiro parecia ter dominado a cidade inteira, até crianças sendo flagradas com milhares de dólares nas mãos, trinta e seis mil precisamente, quantia que não estava sendo destinada para instituições de caridade. O livro do Bascomb registra ainda a ação coordenada de uma equipe, onde foram efetivamente articulados competência, criatividade, coragem, planejamento e objetivos previamente determinados.
Um livro para nunca mais se esquecer.

PS. No Recife, autoridades da Defesa Social alardearam pelos jornais que não seria preciso preocupar-se com a migração de meliantes cariocas, posto que “estamos absolutamente preparados para enfrentar adversidades desse gênero”. Um “arrotamento” desnecessário, quando para a prevenção/erradicação bastaria aqui uma ação tropa de elite nas “bocas” de distribuição de crack, cocaína, maconha e outros alucinógenos, algumas delas situadas nos derredores do lindamente restaurado Hospital Pedro II, distribuidoras para toda a capital pernambucana, inclusive para eventos em áreas tidas como granfas.

(Publicada em 29/11/2010, no Portal da Revista ALGOMAIS, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves