BOFETADA TEOLÓGICA


Uma amiga muito amada, a Myrna Melo, talento graduado na FCAP a alguns anos, hoje especialista em finanças internacionais nos países escandinavos e resto do mundo, relembrou outro dia, no Facebook, área onde se misturam mentes sadias e fogueiras de vaidade, um livro que deveria ser lido e muito bem refletido por pessoas de todos os naipes religiosos: Deus em Busca do Homem, do rabino Abraham Joshua Heschel, editora Arx, SP, 2006. O rabino Heschel (1907-1972) foi considerado um dos mais importantes teólogos judeus contemporâneos, tendo sido um ativo defensor dos direitos civis nos Estados Unidos e da liberdade religiosa dos judeus na União Soviética.

Relendo o texto do rabino, cuja primeira leitura me foi recomendada por Arão Parnes, um querido irmão hebreu, pai da adolescente Hannah, uma sobrinha-torta que me dá um orgulho danado, cabeça pensante e atuante, liderança estudantil num colégio brasiliense, de pronto me deparei com uma sonora bofetada, na abertura do capítulo primeiro: “Costuma-se culpar a ciência secular e a filosofia anti-religiosa pelo eclipse da religião na sociedade moderna. Seria mais honesto culpar a religião por suas próprias derrotas. Ela decaiu não porque foi contestada, mas porque se tornou irrelevante, enfadonha, opressiva e insípida.” E continuou batendo, sem contemporização: “Quando a fé é completamente substituída pelo credo, o culto pela disciplina, o amor pelo hábito; quando a crise de hoje é ignorada pelo esplendor do passado; quando a fé se torna um mero objeto herdado em vez de uma fonte de vida; quando a religião fala somente em nome da autoridade em vez da compaixão, sua mensagem se torna sem sentido”.

E o feriadão último foi tomado pela releitura do texto do rabino Heschel, um livro que favorece um viver fortalecido na esperança de um mundo religioso diferenciado do de agora, onde conceitos mortos não são diferenciados de conceitos vivos, onde a filosofia é vista, pelos de mente apenas arrecadadora, como coisa do passado, onde fundamentalistas proclamam, nas suas nano-enxergâncias, que as indagações definitivas já foram plenamente respondidas, sem se aperceberem da lição deixada pelo padre Daniel Lima, recentemente eternizado: “porque o mistério da vida e a beleza da vida só se dão gratuitas e plenas, a quem andando sempre, ama a viagem, pois a estrada é a viagem e a estrada é a vida”. Uma caminhada sempre aivada de muita esperança nos horizontes dos amanhãs planetários, onde não se chegará nunca, mas se caminhará sempre, sempre buscando, continuando num vir-a-ser cada vez próximo da Energia Maior, distanciada de um teísmo cada vez mais distanciado de uma contemporaneidade que se rende diante da Base da Nossa Existência, na expressão feliz de Paul Tillich.

A releitura do livro do rabino Heschel me revigorou a esperança nos futuros de uma transcendentalidade planetária multi-denominacional, radicalmente igualitária, onde as religiões sejam vistas como dirigidas por seres humanos, passíveis de distorções externas e corrupções internas, propiciadoras de auto-ilusões, posto que “a grandeza interior da alma humana resulta da capacidade do homem se deixar sensibilizar pela grandiosidade externa da natureza”.

Obrigado, querida Myrna, pela lembrança de um livro que de há muito estava a merecer releitura. Com o rabino Heschel fortaleci a crença de avaliar o perigo que se inicia quando ele começa a nos deixar limitado por apenas uma única perspectiva, considerando uma parte como se o todo fosse. O Ezequiel profeta estava repleto de razão: “Ai do povo que vê, mas não conhece o que está vendo, ele está de pé, mas não sabe sobre o quê”.

(Publicada em 18.06.2012, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves