BISPOS ARRETADOS


Todos sabem que sou um anglicano transreligioso, bastante crítico e alérgico aos nepotismos e cavilações dos sepulcros caiados travestidos de ovelheiros. E que, dentre os múltiplos anglicanismos atuais, nutro admiração profunda por duas inteligências episcopais século XXI, integralmente contemporâneas, distanciadas dos macaqueamentos hipócritas, purpurados ou não, enganadores/sugadores que melindram uma juventude apetrechada de uma criticidade evolucional sem precedentes, capaz de enfrentar os obstáculos que rapidamente se acumulam num século onde as denominações religiosas cedem vez para espiritualidades compatíveis com as análises evolucionistas. Uma delas é o bispo John Shelby Spong, autor de Um Novo Cristianismo Para Um Novo Mundo, Verus, 2006, que foi liderança episcopal por 24 anos de Newark, USA, até se aposentar em 2009, ainda permanecendo um dos principais porta-vozes do cristianismo liberal.

O outro, eu o conheci no Recife, na Igreja Anglicana então presidida pelo Rev. Paulo Garcia, hoje arcebispo da Igreja Episcopal Carismática: o bispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz de 1984. Que acaba de lançar o livro Deus Não É Cristão E Outras Provocações, editora Thomas Nelson Brasil, 2012, com prefácio brasileiro de Ed René Kivitz, teólogo, escritor e pastor da Igreja Batista de Água Branca, São Paulo. Segundo Bono Vox, vocalista da banda U2, “Desmond Tutu é a melhor propaganda do cristianismo que caminha nesta terra”.

Desmond Tutu encanta pelos seus pontos de vista poderosamente honestos, ainda que, às vezes, arrepiantemente polêmicos. Como o que escreveu para uma conferência acontecida, em 1973, na Grã-Bretanha: “A teologia negra investiga se é possível ser negro e continuar cristão; ela trata de se perguntar de que lado está Deus; trata de se preocupar com a humanização das pessoas, porque aqueles que roubam a nossa humanidade desumanizam-se a si mesmos; ela se preocupa com a libertação de todos, negros e brancos, já que a libertação do negro é apenas o outro lado da moeda da libertação do branco. … A teologia negra, portanto, é a teologia do oprimido e, nesse sentido, é uma teologia de libertação. … O futuro da humanidade não está determinado. Ele está aberto para a surpresa divina, que subverte as estruturas desumanizadas que fazem dos filhos de Deus menos do que devem ser”.

Recentemente, pelo Facebook, o bispo anglicano Jubal Neves, um irmão gaúcho que muito amo, reproduziu um pensar de Leonardo Boff de profunda atualidade, que seguramente seria endossado por Desmond Tutu e John Shelby Spong: “A primeira tarefa da Teologia e das igrejas é elas assumirem que são cúmplices do mundo a que chegamos hoje. Isso significa que houve algum erro na nossa transmissão da fé, na nossa vivência bíblica, pelo qual não conseguimos evitar a crise ecológica e a crise econômica mundial. Não temos a chave da salvação, somos parte do problema. E com muita humildade, precisamos renunciar a toda a arrogância de que “temos a palavra da revelação e então sabemos”. Nós não sabemos. Temos que nos unir a todos os grupos, começando pelos pobres – que têm sua sabedoria –, e depois com o discurso das ciências, das outras igrejas, com todos os discursos que criam sentido. Além disso, é muito importante sentir-se num discurso junto com os demais, não tendo exclusividade, afirmando que “nós temos a revelação; nós temos a chave”, porque, na verdade, não a temos. Quando a Igreja teve essa arrogância e assumiu o poder, foi um fiasco. Governou mal, até 1890 ainda havia pena de morte nos estados do Vaticano, além de cometer grandes erros históricos contra a modernidade e os direitos humanos. Então, ela não pode apresentar títulos de credibilidade. Primeiro, precisa reconhecer que pode aprender no diálogo e que pode dar uma contribuição a partir do que vem do exemplo de Jesus. Nosso desafio não é o de criar cristãos, mas de criar pessoas honestas, humanas, solidárias, compassivas, respeitosas da natureza.”

Graças a bispos como Desmond Tutu e Shelby Spong continuo sendo anglicano, arrostando os apoucados que nada semeiam, apenas cultivando discórdias e malquerenças, mentalmente ananicados, fingidamente evangelizadores, enaltecedores dos próprios egos. A leitura dos dois livros acima citados retempera ânimos, alavanca esperanças e edifica novos combates paulinos, sempre sob a batuta do Homão da Galileia, irmão nosso libertador. Abjurando os bla-blá-blás melosos que, como dizia minha avó Zefinha, “é merda em fatia”.

PS. Tão arretado quanto os bispos acima citados é o papa Berto, jornalista Luiz Berto, do jornal A Besta Fubana, querido irmão caminheiro de longa data.

(Publicada em 03.12.2012, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves