BIOGRAFIA DESCONSTRUTIVA
Para quem gosta de ler uma biografia realista, não adocicada, do tipo que tanto apavora alguns artistas brasileiros, que temem ver suas trajetórias artísticas contadas sem as lantejoulas anestésicas pespegadas sob generosos jabás, recomendo com entusiasmo UMA RELAÇÃO PERIGOSA, de Carole Seymour-Jones, editora Record, 2014.
Depois da morte de Sartre, em abril de 1980, Simone de Beauvoir (de nascimento Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir) publicou as cartas de Sartre para ela (Lettres du Castor), dizendo que as dela para ele estavam desaparecidas, muito embora um dos seus amantes, Jacques-Laurent Bost, a considerasse uma mentirosa compulsiva.
Sete meses após a morte de Simone, em 1986, Sylvie Le Bom de Beauvoir, parceira de Beauvoir, filha adotiva e testamenteira literária, descobriu no estúdio da escritora, na rue Schoelcher, um pacote de cartas endereçadas a “Monsieur Sartre”, tendo também publicado tais cartas sem corte algum. No prefácio, Carole Seymour-Jones ressalta que a divulgação das cartas sem cortes “era preferível contar tudo para contar a verdade […] rejeitar os clichês, os mitos, as imagens – todas essas mentiras -, de modo que a pessoal real, como ela realmente era, aparecesse”. E foi além: “Pela primeira vez, leitores chocados puderam ver o véu cor-de-rosa que protegia a união de Beauvoir e Sartre sendo rasgado para revelar a verdade da exploração sexual dos seus pupilos”.
No livro, as cartas de Sartre para uma namorada soviética, Lena Zonina, disponibilizadas pela própria filha dela, Macha. E a explicação convincente da recusa do aperto de mão a Sartre de Soljenítsin, tornado “a encarnação da desonra”, pela atitude do escritor em relação ao fascismo, quando o casal enriqueceu à custa dos judeus.
A biografia está desenvolvida em cinco partes: 1. A busca da felicidade (1905-1938); 2. Os anos negros (1939-1944); 3. Écrivans Engagés (1945-1956); 4. Falsos Deuses (1952-1968); 5. A cerimônia do Adeus (1969-1986). Na biografia portentosa também confirma como, em 1952, Sartre admitia que Camus foi o autêntico combatente da Resistência que Sartre não foi.
Segundo a própria Simone, a feiura de Sartre, teve “um efeito Mirabeau”: era uma feiura poderosa, misturada com charme e eloquência. E que deixava ela fazer incursões noturnas aos bordeis da cidade, para efetivação das suas fantasias sexuais. Segundo Schopenhauer “casar-se significa fazer o possível para sentir aversão reciprocamente”.
Uma leitura repleta de detalhes bastante insólitos, intrigas um tento nefastas, encontros e traições múltiplas, comportamentos libertinos e fingimentos recíprocos, inclusive ideológicos. Uma biografia essencialmente libertadora, historicamente capaz de catapultar cidadanias críticas, sem idolatrias idióticas que vitimam caminhares sadios para gregos e troianos. E até cantores de rádio, hoje envelhecidos como os demais companheiros de caminhada menos enaltecidos.
(Publicado no Jornal do Commercio, Recife, Pernambuco, 11.10.2014
Fernando Antônio Gonçalves