BÍBLIA DO CAOS
Numa semana de múltiplas patifarias e gigantescos protestos contra a esculhambação política que procura desesperadamente se escafeder das malhas judiciárias, nada melhor que a leitura de pensamentos de um gênio brasileiro, Millôr Fernandes, contidas no livro-maravilha Millôr definitivo: a bíblia do caos, editado em Porto Alegre pela L&PM. Com 554 páginas de muita lucidez de quem deixou sua marca na vida intelectual brasileira, as 5.299 frases retratam “a nossa história recente e traduzem de maneira genial o que se viu, sonhou, sofreu e vibrou nestas últimas décadas”.
Nascido em 16 de agosto de 1923 e eternizado em 27 de março de 2012, aos 88 anos de idade, Millôr Fernandes, de nome completo Millôr Viola Fernandes, foi escritor, dramaturgo, jornalista e tradutor. Suas colaborações para o teatro chegam a mais de uma centena, seus escritos, em inúmeras ocasiões, sofrendo censuras férreas dos donos do poder.
Para aqueles que ainda não leram A Bíblia do Caos, reproduzo, abaixo, alguns dos seus pensamentos, rogando aos caríssimo leitores um instante de reflexão sobre a atual situação vexatória por que passa o nosso Brasil, hoje motivo de chacota no cenário internacional, dada suas atuais fragilidades políticas, econômicas, sociais e morais:
“Um perfeito canalha tem todas as provas de sua inocência”.
“Os comunistas remanescentes continuam não admitindo que ideias não usadas também enferrujam”.
“O dinheiro compra o cão, o canil e o abanar do rabo”.
“Está na hora de declarar o Imposto de Renda. Vai começar o jogo de esconde-esconde”.
“Se você gosta de aparecer, roube, mate e esfole. As manchetes não se interessam pela virtude, nem pelo bom comportamento”.
“Antigamente tinha o médium, intermediário entre o além e o aquém. Hoje tem a mídia, intermediária entre o consumado (espertalhão) e o consumista (idiota)”.
“Num país inteiramente desmoralizado, quando o cidadão ouve dizer ‘Não cobiçarás a mulher do próximo’, acha que o estão autorizando a cobiçar todas as outras”.
“Até em detalhes eu me grilo com os igrejólogos. Por que esse negócio de “Dom”? “Dom” Evaristo, “Dom” Lucas, “Dom” não sei o quê. “Dom” por quê? Eles são príncipes? A ideia geral não é a humildade?”
“Pessoas se perguntam – ocasionalmente me perguntam – em quem confiar no momento em que não se confia na própria sombra, nem na luz que faz a sombra? Mas convém ser assim pessimista?, pergunto eu.Tem sempre um lado bom. Ontem mesmo eu vi um cara (não via há muito tempo mas é até amigo meu, não digo o nome porque pode ocasionalmente ler este quadrado e achar que estou dedurando ele, embora essa deduragem seja para apontá-lo pelo que é, um raro e extraordinário homem de bem) que serve. Pude examiná-lo durante algum tempo, simpático como sempre, saudável, esse homem culto, claro de ideias, experiente, generoso, olha – pensei – capaz de salvar o Brasil. Mas por que estava correndo desse jeito àquela hora da noite?”
“Nada é mais grave e perigoso do que emoção juvenil em adulto.”
“Chama-se de incentivo fiscal a maneira que o governo descobriu para fazer com que os nordestinos pobres contribuam para diminuir o imposto de renda dos paulistas ricos.”
“Grande erro da natureza é a incompetência não doer.”
“O domínio das palavras é coisa rara. As pessoas usam as palavras como ela lhes ocorrem, numa sequência de ressonâncias, esquecidas de que as palavras representam ideias. Por exemplo, o sujeito na minha frente está dizendo que tem sessenta anos de morte. E uns seis meses de vida.”
“Fundamentalmente o humorista tem que saber de onde veio e para onde vai. Se não conseguir saber isso do ponto de vista escatológico (Aurélio!) deve pelo menos saber do momento em que se encontra: se vai pra casa ou vai pro bar, se sai do bar e vai pro bordel. Já é meio caminho andado (em ziguezagues se está saindo do bar).”
“Mulheres de pernas lindíssimas anunciando depilantes cujos nomes a dona-de-casa nem nota porque está apenas, melancolicamente, comparando os seus pobres gambitos, a que nenhum depilante vai dar jeito, com as pernas monumentais do anúncio.”
“Não tenha contra o topless. Desde que me deixem escolher as topeladas.”
“Ao fim e ao cabo o homem que come carne é tão vegetariano quanto o homem que come vegetais. A carne é apena a transubstanciação do capim que o anima comeu.”
“A história é dos vencedores. O soldado que foi anunciar a vitória de Maratona correu 42 quilômetros. A história não registrou quanto correu o soldado que foi anunciar a derrota.”
“A gigantesca roubalheira mostra que estamos vivendo um extraordinário Baile da Ilha Fiscal. Agora, dados os tempos, sem fiscal.”
“Depois de examinar o comportamento dos congressistas que, por serem representantes da população, representam o melhor dela, uma conclusão se impõe: o homem brasileiro já parou de evoluir.”
Um carioca, o Millôr, que está fazendo uma falta daquelas em tempos de tiriricas, cunhas e delcídios, para aqui não falar de barbudos e madames de primeiro escalão de uma ré pública.
(Divulgado em 20.06.2016, no www.fernandogoncalves.pro.br)
Fernando Antônio Gonçalves