ASSIM FOI AUSCHWITZ
Em setembro passado, a publicação de Assim Foi Auschwitz: testemunhos 1945-1986, Primo Levi com Leonardo De Benedetti, organização Fábio Levi e Domenico Scarpa, São Paulo, Companhia das Letras, 2015, me deu a oportunidade de ler relatórios, depoimentos, críticas e cartas escritos ao longo de quarenta anos sobre as atrocidades desumanizadoras de extermínio cometidas no campo de concentração mais terrificante do III Reich.
Tão logo encerrada as atividades da criminosa fábrica da morte construída pelo regime nazista para executar judeus, homossexuais, comunistas e ciganos, Primo Levi, um químico, juntamente com o médico Leonardo De Benedetti foram encarregados pelas autoridades soviéticas para elaborarem um relato minucioso sobre as condições de saúde do famigerado campo de concentração, tornando-se peça testemunhal sobre as escabrosidades cometidas por médicos, enfermeiros e outros seres desumanos. E o livro acima citado, desenvolvido numa prosa sóbria e antissentimental, foi publicado inicialmente em 1946 numa revista científica, sendo ampliado nas décadas seguintes, por testemunhos complementares sobre um sistema diabolicamente concebido para despojar o ser humano do seu corpo, da sua esperança, da sua própria vida.
No Relatório sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz (Auschwitz – Alta Silésia), Levi e Benedetti fazem um relato sem espalhafatos do famigerado local. Um trecho para conhecimento de todos: “O funcionamento das câmaras de gás e do crematório anexo ficava a cargo de um Comando Especial, que trabalhava dia e noite em dois turnos. Os integrantes desse Comando viviam à parte, ciosamente isolados dos outros prisioneiros e do mundo exterior. Suas roupas exalavam um cheiro nauseabundo; estavam sempre sujos e tinham um aspecto absolutamente selvagem, de animais ferozes. Eram escolhidos entre os piores criminosos condenados por graves crime de sangue. Temos conhecimento que, em fevereiro de 1943, inauguraram em Birkenau novas instalações de um crematório e de uma câmara de gás. Eram compostas de três partes: a câmara de espera, a “sala das duchas” e os fornos. No centro dos fornos erguia-se uma chaminé alta, ao redor da qual havia nove fornos, com quatro aberturas cada um, cada uma delas permitia a passagem simultânea de três cadáveres. A capacidade de um forno era de 2 mil cadáveres por dia”.
Como funcionavam os assassinatos em Auschwitz? O relato da dupla Levi/Benedetti é didaticamente aterrador: “As vítimas recebiam ordem de se despir totalmente, porque – diziam-lhes precisavam tomar banho; para disfarçar ainda mais o sórdido engano, entregavam-lhes um pedaço de sabão e uma toalha. Depois disso, eram conduzidos à “sala da ducha”, um aposento grande , com um falso sistema de chuveiros nas paredes, onde se destacavam avisos como “Lavem-se, porque limpeza é saúde”, “Não economizem sabão”, “Não esqueçam a toalha”, de modo que a sala podia dar a impressão de ser realmente um local de banho. No teto plano havia uma abertura ampla, hermeticamente fechada por três grandes chapas de metal, que se abriam com uma válvula. Alguns trilhos atravessavam toda a extensão da câmara até os fornos. Quando todos entravam na câmara de gás, as portas eram fechadas (e vedadas contra a entrada de ar) e, pelas válvulas do teto, soltava-se um preparado químico em forma de pó grosseiro, de cor cinza-azulada, contido em latas, cujo rótulo especificava Zyklon B – Para destruição de todos os parasitas animais’ e que apresentava a marca de uma fábrica de Hamburgo. Tratava-se de um preparado de cianureto, que se evaporava a determinada temperatura. Em poucos minutos, todos os trancafiados na câmara de gás morriam; então as portas e janelas eram abertas e os encarregados do Comando Especial, usando máscaras, entravam em ação para transportar os cadáveres até o crematório. As cinzas, como se sabe, eram usadas como fertilizantes em campos e hortas”.
Para quem deseja se cidadanizar mais, os testemunhos do escritor italiano Primo Levi (1919-1989) merecem leituras várias e reflexões múltiplas. Como sobrevivente de Auschwitz, número de matrícula 174517, ele proporciona no livro acima, um conhecimento histórico realista sobre a presença do mal nazista no século XX em pleno coração de uma Europa pretensamente civilizada.
Através de uma prosa seca e límpida, Primo Levi retrata as ignomínias praticadas no Campo de Concentração de Monowitz, um dos cem “Campos” dependentes do centro administrativo de Auschwitz, onde “nenhum valor psíquico ou cultural era levado em conta, todos passavam indistintamente a fazer parte de uma massa amorfa, mantida em ordem pelo medo e pelos castigos físicos”.
Para quem deseja assenhorear-se mais sobre as atrocidade cometidas em Auschwitz, objetivando uma conscientização mais solidária e convincente, dois outros livros de Primo Levi são indispensáveis. O primeiro, É isto um homem?, editora Rocco, 1989. O segundo, não menos importante que o primeiro, é Os afogados e os sobreviventes, SP, Paz e Terra, 2004, onde na orelha segunda do livro uma advertência nos deixa cada vez mais militante: “O Holocausto, as deportações, os trens, as câmaras de gás e seis milhões de judeus realmente existiram. Logo, podem acontecer novamente. Este é o ponto principal de tudo quanto este livro tem a dizer.”
Saibamos ampliar nossa criticidade civilizatória, observando sem sectarismos os sinais da conjuntura mundial, onde muitos estão ganhando muito e a quase totalidade vivenciando humilhantes aperreios financeiros.
(Publicado em 08.02.2016, no site do Jornal da Besta Fubana – www.luizberto.com/sempreamatutar)
Fernando Antônio Gonçalves