AREIAS QUE MACHUCAM
Outro dia, participando do programa Geraldo Freire, na líder JC, em companhia do frei Aloísio Fragoso e do José Nivaldo Júnior, historiador refinado, o nome de Rubem Alves foi citado. Um dos participantes anunciou que ele tinha editado recentemente um livro. Uma coletânea de pensamentos acumulados durante anos, reflexo de uma caminhada de alegrias e decepções, altos e baixos, risos e lágrimas. Sempre a enxergar novos amanhãs, desafiadores todos eles, prenhes de uma “enxergância” muito acima das mediocridades que se encorujam diante dos desdobramentos das ciências.
Pela Internet, providenciei a aquisição do livro do Rubem Alves, professor emérito da Universidade de Campinas, também agraciado com a Medalha Carlos Gomes, pela sua contribuição à cultura brasileira. E o texto, de releituras prazenteiras, ratificou a lucidez do autor.
O título é provocador: Ostra Feliz Não Faz Pérola. Reflexões que se iniciam a partir de uma análise sobre o comportamento do molusco que, atormentado por um grão de areia, o envolve “com uma substância lisa, brilhante e redonda”, transformando-o numa linda pérola. Uma metáfora esplendorosa, que lembra um mote helderiano: quanto mais se esmaga a cana, mais ela oferece doçura.
Os “retalhos analíticos” do Rubem Alves refletem um saber sem fricotagem, um olhar crítico sobre o mundo atual, com suas veleidades e grandezas, suas religiosidades que não disfarçam ânsias de mando e falsos pieguismos, suas atrocidades bélicas travestidas de “cruzadas democráticas”, suas decrepitudes ideológicas, suas inventividades sociais sem um mínimo de fulgor, seus parlamentos sensabores, de oposições integralmente destituídas de estratégias consistentes, mais parecidas com papagaios em areia muito quente.
0 livro de Alves é uma sementeira neuronial que aguça nossa criticidade, denunciando a ausência de “simancolidades”. Proporciona boas cutucadas nos que se ensimesmam, contempladores dos próprios umbigos, que não percebem como elevados se encontram seus NR, Níveis de Ridicularia. Como aquele casal de estudantes brasileiros que cursava pós-graduação na Universidade de Louvaina, Bélgica. Numa festa, dançando entusiasmados, repararam que os demais estavam parados, observando-os. No final da música, ouviram um comentário: “É a primeira vez que vejo um casal dançando o hino nacional da Bélgica”. Ou aquela velhinha que procurou o seu pastor desesperada, posto que tinha concluído, lendo Ap 22,15, que seu cãozinho de estimação não entraria no céu. E que Alves, se a consulta fosse com ele, assim responderia: “Fique tranquila. O seu cãozinho estará eternamente ao seu lado … Não só o seu cãozinho como gatos, girafas, macacos, peixes, tucanos, patos e gansos … Deus gosta de bichos. Os bichos o louvam melhor que os humanos. Se Ele gosta de bichos eles serão ressuscitados no último dia …”.
O Rubem Alves transita bem entre o erudito e o popular, explicitando com muita propriedade a diferença entre um professor talentoso – opus proprium dei – e um docente medíocre – opus allienum dei – , os segundo tornando-se grande maioria nas “falcudades” de todos os quadrantes.
Na parte Religião, Rubem Alves destaca-se com singular propriedade. Certa vez, um repórter perguntou-lhe se ele acreditava em Deus? Resposta: “Que Deus? O Deus de são Francisco não era o Deus de Torquemada. São Francisco usava o fogo do seu Deus para aquecer a alma. Torquemada usava o fogo do seu Deus para churrasquear hereges em fogueiras que eram a diversão do povo”.
A definição que Rubem Alves faz de Deus é antológica: “Deus é o nome que dou a um vazio imenso que mora em minha alma, vazio onde voam meus desejos na esperança de encontrar, no futuro, as coisas amadas que o tempo me roubou”.
A leitura do novo livro de Rubem Alves defenestra fingidos e amacacados, bajuladores e incompetentes, falsos humildes civis, militares e eclesiásticos.