APÓSTOLO DO DIÁLOGO


Eternizou-se, em 31 de agosto último, aos 85 anos, o cardeal italiano Carlo Maria Martini, arcebispo emérito de Milão, reconhecido como um autêntico apóstolo do diálogo cristão. Que reconheceu, sem qualquer salamaleque embromatório, numa entrevista dada em 8 de agosto: “A igreja está atrasada 200 anos. Ela está exausta, na Europa do bem-estar e na América. Nossa cultura envelheceu, nossas grandes igrejas estão vazias, o aparato cresce como fermento, nossos ritos e nossas vestes são pomposos. … Somos como o jovem rico que foi embora triste, quando Jesus o convocou para ser seu discípulo”. Uma bofetada alertadora para uma Igreja que está submetida, na suas hierarquias superiores, aos ditames do poder financeiro, embora fingidamente ainda proclame estar sujeita às Leis do Senhor da História.

Doutor em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, o cardeal Martini ingressou na Companhia de Jesus em setembro de 1944, sendo ordenado padre em 13 de julho de 1952, tornado decano e reitor do Pontifício Instituto Bíblico em setembro de 1969, nomeado reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma em julho de 1978. Em 2002 decidiu-se por viver em Jerusalém, retornando definitivamente para a Itália, em 2008, acometido pela doença de Parkinson, enfermidade que o levou à eternidade.

Em novembro de 2007 lançou junto com o Pe. Georg Sporschill o livro “Diálogos Noturnos em Jerusalem” onde em forma de entrevista discute os temas mais relevantes da atualidade da fé e os desafios de chegar aos jovens e as suas questões tão conturbadas nos dias de hoje.

Nas suas últimas entrevistas, o cardeal Martini não se acovardou: “O padre Karl Rahner usava de bom grado a imagem das brasas que se escondem sob as cinzas. Eu vejo na Igreja de hoje tantas cinzas sobre as brasas que muitas vezes me assola uma sensação de impotência. Como se pode livrar as brasas das cinzas de modo a revigorar a chama do amor? Em primeiro lugar, devemos procurar essas brasas. Onde estão as pessoas individuais cheias de generosidade como o bom samaritano? Que têm fé como o centurião romano? Que são entusiastas como João Batista? Que ousam o novo como Paulo? Que são fiéis como Maria de Mágdala? … “A Igreja deve reconhecer os próprios erros e deve percorrer um caminho radical de mudança, começando pelo papa e pelos bispos. Os escândalos da pedofilia nos levam a tomar um caminho de conversão. As questões sobre a sexualidade e sobre todos os temas que envolvem o corpo são um exemplo disso. Estes são importantes para todos e, às vezes, talvez, são até importantes demais. Devemos nos perguntar se as pessoas ainda ouvem os conselhos da Igreja em matéria sexual. A Igreja ainda é uma autoridade de referência nesse campo ou somente uma caricatura na mídia?”

Fiquei com uma vontade de enviar o último livro de Hans Küng – A Igreja tem salvação? – para algumas autoridades eclesiásticas, romanas e não-romanas, para que postem no arquivo morto as legislações descabidas, a exemplo do atual Código de Direito Canônico, promulgado pelo papa João Paulo II em 1983, hoje considerado por especialistas como um produto historicamente duvidoso.

As intimidades perniciosas do Vaticano com as elites financeiras do mundo provocam um etos infantilista, denunciado por Benjamin R. Barber em Consumido (Record 2009), um livro extraordinário, ainda que pouco citado nos últimos anos: “O etos infantilista está dominando julgamentos dogmáticos, com base em ‘preto no branco’; na política e na religião substituem as complexidades cheias de nuanças da moralidade adulta, enquanto as marcas da infância perpétua são impressas em adultos que se entregam à puerilidade sem prazer e à indolência sem inocência. Daí a atração do novo consumidor pela idade sem dignidade, por roupas sem formalidade, sexo sem reprodução, trabalho sem disciplina, brincadeiras sem espontaneidade, aquisição sem propósito, certeza sem dúvidas, vida sem responsabilidade e narcisismo até a idade avançada e até a morte sem um vestígio de sabedoria ou humildade. Na época em que vivemos, a civilização não é um ideal nem uma aspiração, é um videogame”

A verdade liberta, proclamava São João. A falsidade, o fingimento, as posturas cavilosas e os posicionamentos nunca helderísticos, de fachada e apenas para a patuleia imaginar-se integrada, afastam os jovens mais lúcidos, acalentam desesperanças e revigoram alienações, desrespeitando escandalosament a Mensagem do Homão de Nazaré, nosso Irmão Libertador.

(Publicada em 01.10.2012, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves