ANGÚSTIA EXISTENCIAL


No Natal último, logo depois de um jantar, telefonema de amigo que há mais de vinte anos não dava sinal de vida. Tinha vivenciado alta ansiedade diante das perspectivas de um fim de mundo que acabou não acontecendo, em muito ampliando sua curiosidade sobre as diversas religiões de um planeta que se contorce diariamente entre o profano e o sagrado, áreas de gigantescas aberrações, a primeira se manifestando através de uma permissividade desenfreada que não terá bom final, a História estando aí para as recordações possíveis. O lado sacro, repleto de posturas não condizentes com balizamentos éticos compatíveis com uma solidariedade humana universal cada vez mais indispensável.

Claro que eu não poderia oferecer ao amigo leituras infantilizadoras/anestésicas, dessas que estão pululando nas livrarias do país, alienando um sem-número de pessoas, do tipo daquelas que colocam no vidro de trás dos automóveis “Propriedade exclusiva de Jesus”, ou “Dirigido por mim e guiado por Deus”, ou ainda aquelas famosas “Só Jesus salva” e “Deus é fiel”. Todas amplamente desrespeitosas para com as outras centenas de religiões dos cinco continentes. Indiquei-lhe o Dicionário Histórico de Religiões, do professor Antônio Carlos do Amaral Azevedo, segunda edição revista e atualizada em coautoria com Paulo Geiger, um conhecedor profundo do judaísmo, primorosa edição Lexicon, 2012, Rio de Janeiro.

Classificado como obra de referência, o Dicionário Histórico de Religiões “apresenta informações básicas e descritivas de elementos factuais, conceituais, históricos concernentes às religiões mais importantes, sem considerar aspectos teológicos ou relativos à fé religiosa em si mesma”. E está dividido em cinco secções: a) Fatos e Conceitos, consistindo no corpo principal do dicionário, reunindo verbetes sobre conceitos, fatos, eventos, correntes, facções, seitas, símbolos e mitos sobre as principais religiões; b) Biografias de personagens históricos, reais ou míticos, das crenças e da história das religiões; c) Deus, Divindades e Demônios, os cultuados pelas religiões ou descritos em mitologias e superstições; d) Glossário elucidativo sobre verbetes e palavras; e) Remissões, referências cruzadas, implícitas e explícitas, que proporcionam consistentes apreensibilidades cognitivas.

Depois de uma semana, o Barbosinha me telefona encantado com o livro, mais de novecentos verbetes sobre as crenças existentes, ao longo de mais de quarenta séculos, em religiões, seitas, doutrinas, personagens e eventos que integraram e/ou integram até hoje a vida cultural das nossas sociedades. Verbetes escritos para todos aqueles que desejam se inteirar das manifestações religiosas que afetam a quase totalidade da população mundial, sem o teologuês que irrita aprendizes e leigos curiosos e os ademanes acadêmicos que ampliam preconceitos e obstáculos epistemológicos, gerando ingenuidades, invencionices pueris e estruturas ideológicos que agridem a necessidade de lucidez do espírito humano.

Almoçando no Restaurante Senac, sempre primoroso, Barbosinha e eu, juntamente com mais dois amigos comuns da UNICAP, consultamos inúmeros verbetes do dicionário, sendo alguns considerados bastante incomuns. Por exemplo, ranters era uma seita cristã inglesa do século XVII, cujos membros se consideravam possuídos pelo Espírito Santo. Eram provindos, na sua totalidade, do meio humilde, quando não vulgar e baderneiro. Eram espalhafatosos, desprovidos de organização, entre ele predominando a bebida e a gesticulação histriônica. Recusavam a comunhão e o estudo da Bíblia, negavam a existência do pecado e não possuíam qualquer tendência ao martírio e à renúncia.

O almoço terminou com uma perplexidade grupal: haveria ranters, nos tempos de agora, mesmo travestidos de militantes de algum partido considerado sem qualquer mácula?
(Publicado no Jornal do Commercio, Recife, Pernambuco, 08.02.2013)
Fernando Antônio Gonçalves