ALERTA OPORTUNO
Passada a folia de Momo, onde muita beleza e criatividade conviveram lado a lado com aberrações que denigrem a natureza humana, é chegada a hora de atentar, sem moralismos nem puritanismos, para algumas alucinações que estão acontecendo no mundo inteiro. Como as exibições proporcionadas por aquela piniquelite (piniqueira socialite) norteamericana Paris Hilton, que certamente imaginou que aqui era território de Mãe Joana, podendo postar-se publicamente de quatro, embriagadíssima. Uma posição que deveria ela manter até o final dos seus dias, ainda que apoiada em outro animal. Com posturas de devassa, acredito até para fazer correlação com o idiótico nome de uma cerveja sem seriedade publicitária.
Para a Quaresma, que chegou, já recheada de gigantescas hipocrisias, ousaria recomendar a leitura de um livro que aponta as maneiras várias de, sobrepairando as religiões, livrar anualmente dez milhões de crianças de uma morte por fome. Lançamento deste ano da Editora Campus, Quanto Custa Salvar uma Vida é da autoria do filósofo Peter Singer, especialista em Bioética, da Universidade de Princeton e considerado uma das 100 pessoas mais influentes no mundo pela revista Times.
A leitura do livro amplia consciências e reforça a luta daqueles que buscam maneiras de viver decente e solidariamente voltadas para os ensinamentos transmitidos pelos Sábios da Humanidade, como Buda, Sócrates, Gandhi, Confúcio, Jesus, Maomé, Teresa de Ávila. Que souberam dignificar suas caminhadas terrestres.
Algumas estatísticas contidas no livro do Singer são por demais chocantes: atualmente, mais de um bilhão de pessoas estão vivendo num nível de pobreza jamais visto anteriormente; numa semana de 40 horas de trabalho, os americanos precisam de apenas duas para acumular o suficiente para um período alimentar de sete dias; antes da crise financeira do ano de 2008, existiam 1.100 bilionários no mundo, detentores de um patrimônio líquido de 4,4 trilhões de dólares; pesquisa recente revelou que, do lixo doméstico dos norte-americanos, 14% é composto de alimentos em bom estado, ainda nas embalagens originais e dentro do prazo de validade; no mundo, o número de pessoas que vivem abaixo de uma linha de pobreza de US $ 1,25/dia é estimada em 1,4 bilhões.
O filósofo Singer ressalta que “numa sociedade abastada, a maior parte da pobreza é relativa”. E cita os Estados Unidos: 97% dos classificados lá como pobres têm uma televisão a cores, três quartos possuem carro e têm um videocassete ou aparelho de DVD; e todos têm acesso a uma assistência médica. Nos demais contextos, entretanto, a coisa é muito diferente.
Lamento dizer, mas às vezes fico a imaginar se vale a pena continuar pelejando por um mundo mais cidadanizado. Ou se se deve aplaudir alienadamente aquela doação feita por uma corporação cervejeira à Madona. Para ser notícia em tudo quanto é jornal brasileiro, quando milhões de crianças, nossas irmãs, ainda carecem de água potável, saneamento mínimo e alfabetização sem embromações eleitoreiras.
Na atual contemporaneidade, qual é a metáfora que mais a retrata, a do peregrino ou a do turista?, indaga o professor Yves de La Taille, da USP, educador e psicólogo, francês naturalizado brasileiro, especializado em Desenvolvimento Moral. A do peregrino, segundo ele, evoca imagens de passados longíquos, pré-medievais até. Enquanto a do turista lembra um sujeito que vive o dia-a-dia, lotando aviões, hotéis, pousadas e restaurantes, a cada mês de férias ou a cada feriadão, como se o fim do mundo acontecesse nos próximos dias.
Entre a metáfora do peregrino e a do turista, um aforismo de Benjamim Disraeli merece registro: “A vida é curta demais para ser pequena”. Um lembrete que despertará em muitos, na Quaresma 2010, a diferença gigantesca entre vida e viver. Onde um viver por viver, muitas vezes se asfixia num vazio desesperante, onde não mais se enxerga amanhãs. Resvalando-se, então, para experimentações sem escrúpulos, sem uma mínima empatia para com os famintos. Num individualismo pérfido que apenas faz ampliar melancolias suicidas.
Nesta Quaresma 2010 é sempre bom não esquecer que a viagem do peregrino é um ato de fé na busca de um espaço além. A do turista é simplesmente um trajeto fagueiro com volta marcada. O peregrino busca identidade com o sentido da vida. O turista anseia por alteridade, souvenirs, malas cheias, fotos e feitos, prazeres e nada mais.
Não se deve esquecer que a coragem é a primeira das qualidades humanas, porque é ela que garante as outras. A serviço de peregrinos e turistas. Uma reflexão aristotélica feita quatro séculos antes do nascimento do Homão da Galileia, esse Irmão Libertador de quem sou servo sempre último.
(Portal da Revista ALGOMAIS, 22/02/2010, Recife – PE)
Fernando Antônio Gonçalves