ACHADOS DE ARRUMAÇÃO


Diante de uma crescente desordem do quarto de estudos, causada por excesso de trabalhos e leituras e por um relaxamento na disposição de pastas, livros, recortes de jornais e revistas, eis que assumo um objetivo: reservar uma boa manhã para a execução de uma faxina gota serena, daquelas que você inicia com entusiasmo e conclui com os costados suarentos e doloridos, banho sendo o caminho único relaxante.

Confesso, entretanto, que muito gostei da trabalheira toda. Pelo simples motivo de ter encontrado anotações consideradas “no meio do matagal”, além de uns livros que me pareciam desaparecidos ou escanteados por desconsideração minha, dadas suas importâncias na minha caminhada terrestre, sempre abençoada pela infinita misericórdia do Homão da Galileia, nosso Irmão Libertador.

Numa pasta amarrotada, datilografado em papel já meio amarelado, um pronunciamento docente efetivado em 1978: “Hoje, todo dirigente universitário de bom tirocínio, não pode deixar de dizer presente diante das rápidas mutações que se estão verificando nos contextos nacional e mundial. Isto significa um questionamento sereno na Universidade, sobre o seu próprio diagnóstico e prognóstico, sobre suas próprias realizações, sobre seu ritmo de desenvolvimento, sobre seu nível de competição com as demais instituições”.

Incrustado num livro de História Contemporânea, um escrito de próprio punho contendo uma valiosa advertência do prof. William Edwards Deming, transferido em 1994 para o eterno mundo da não adversidade: “Muitos esforços e muito trabalho apenas não são suficientes, como tampouco o são novas máquinas, computadores e automação. Poderíamos também acrescentar que estamos sendo arruinados pelos melhores esforços feitos com as melhores intenções, porém sem a orientação de uma teoria administrativa para a otimização do sistema. Não existe substituto para o conhecimento”.

Uma revista semanal, final da década noventa, ao ressaltar a necessidade de se aprimorar a educação básica do país, principalmente das regiões menos taludas, reproduzia a advertência famosa de Ortega y Gasset: “Como é possível as rãs discutirem sobre mar , se nunca saíram do brejo?”. E clamava por uma nova classe média brasileira, sem os moralismos faniquiteiros que não levaram a nada nos últimos cem anos. Salvo, completo eu agora, ter mais medo de tudo, de todos e de um amanhã acinzentado que já desembarcou, entre nós apelidado de “rolezinho”.

Já quase no final da arrumação, num livro que pertenceu ao meu pai, encontro com a letrinha dele a reflexão de um brasileiro de muita coragem, Cláudio Abramo, já eternizado: “No fundo acho que está tudo errado. Perdemos os caminhos e as bússolas, nessa confusão conceitual em que nos mergulhamos. Sei que de todos os lados há erros, safadezas e injustiças, e até crimes, alguns hediondos. Mas existe uma espécie de solidariedade fraternal, a nível epidérmico, que nos faz sempre voltar os olhos para os mais desprotegidos e os mais desvalidos da terra. Não sei, exatamente, quanto se avançou nesse terreno, mas sei que algo deverá surgir de tudo isto, dessa gigantesca agonia de um mundo que está falido para que renasça um outro, em que as ideias e os conceitos sejam novos e duradouros”.

Que saibamos entender bem os nossos passados, para que possamos suplantar com efetividade os obstáculos dos amanhãs que se aproximam. Para não ter que aturar entre nós, por exemplo, os torcedores criminosos arruaceiros, muitos deles de agremiações que não estão sendo depredadas, apenas para alívio de seus complexos de tanajuras, aqueles bichinhos de minúsculas cabeças e volumosos traseiros de muita merda.

Numa das últimas reuniões com a juventude de uma comunidade da capital pernambucana, um jovem universitário de Ciências Sociais, com baita tatuagem no braço direito e cabelo raspado, me fez uma pergunta cutucadora: “Como ampliar o amor pelo Brasil, diante de tanta esculhambação reinante nos quatro cantos do país, com uma classe política desmoralizada, à exceção de uns bem poucos, com uma descrença total em nossos amanhãs, numa desacreditação cachorra da moléstia (sic), onde até a esperança parece ter sido trucidada por lideranças religiosas somente interessadas na ampliação da coleta?” Os vigorosos aplausos que se seguiram confirmaram a concordância entusiástica dos presentes.

Num clima de muita sinceridade, afirmei aos que me assistiam que a indagação dos jovem refletia uma angústia generalizada no Brasil de hoje, onde as próprias Ciências Humanas pareciam ter ficado envergonhadas de ser uma das ciências humanas progressistas, voltadas mais para um cientificismo acadêmico tipo “sacristão de igreja” (onde se imita o falar dos maiorais sem nada assimilar suas reflexões). E que estão afastando os talentosos para áreas salarialmente mais bem pagas de um mercado de trabalho onde a capacitação técnica-robótica está estupendamente superando um humanismo que beneficiaria o todos.

E disse-lhes com sinceridade que o fortalecimento da nossa Cidadania estava a mercê do fortalecimento das nossas Ciências Humanas, inclusive com a reestruturação urgente de diversos cursos, inclusive o de Pedagogia, um dos mais empobrecidos intelectualmente da atualidade. E que tal fortalecimento passava necessariamente pela ampliação da dignificação da função docente na Educação Fundamental e no Ensino Médio, através de capacitação e novos níveis salariais.
(Publicada em 28.04.2014, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)