A VERDADEIRA ODESSA


Lembro-me bem do furor causado, nos meios literários, em razão do lançamento de O Dossiê Odessa, do escritor inglês Frederick Forsyth, em 1972, no Brasil que vivenciava um atroz regime militar, sucesso editorial também em outras partes do mundo. O romance contava a movimentação de antigos militantes nazistas que se reuniram para a formação de uma organização secreta chamada Odessa (Organisation der ehemaligen SS-Angehörigen), que possuía como único objetivo resgatar companheiros das garras da justiça, favorecendo a edificação do Quarto Reich, ressuscitando o sonho de Adolf Hitler de edificar um império de mil anos.

Com a liberação de documentos considerados sigilosos pelo Departamento de Estado norte-americano, um cidadão argentino, Uki Gõni, nascido em Washington em 1953 e educado nos EEUU, Argentina, México e Irlanda, resolveu elaborar um livro chamado A Verdadeira Odessa – o contrabando de nazista para a Argentina de Perón, editado no Brasil pela Record, em 2004.

Contando com a colaboração de pesquisadores do Proyecto Testimonio, inovadora investigação do conluio da Argentina com os nazistas, publicado pela DAIA – Delegação de Associações Argentinos-Israelitas, e recebendo apoio da instituição belga CEGES – Centre d’Études et Documentation Guerre et Sociétés Contemporaines, além de uma consistente quantidade de fontes documentais, o autor contou inclusive com a tradução de documentos em alemão, efetivada pelo seu pai, embaixador Santos Goñi.

O livro parte da premissa de que existia uma fantasmagórica organização dedicada a resgatar criminosos de guerra nazistas, alguns até escrevendo sobre personagens do Terceiro Reich que haviam cruzado o Atlântico desembarcando em regiões da Patagônia, escondendo-se inicialmente nos Andes. Segundo Uki Gõni, os documentos pesquisados revelam que “a verdadeira Odessa era muito mais que uma organização fechada, formada apenas por nazistas nostálgicos. Na realidade, ela abrigava várias facções não-nazistas: instituições do Vaticano, agências de inteligência dos Aliados e organizações secretas argentinas, além de contar, estrategicamente distribuídos, com criminosos de guerra de língua francesa, fascistas croatas e até homens das SS da Odessa fictícia, tudo com o objetivo de ajudar os sabujos de Hitler a escaparem.”

Mas o que bastante me impressinou nas mais de 400 páginas do livro foi a relação de religiosos romanos que contribuíram para a “salvação” dos nazistas na Argentina. Eis alguns dos mais destacados: Agustin Barrére, bispo argentino, que estabeleceu, no Vaticano, com o cardeal francês Tisserant, a organização de transporte clandestino de criminosos nazistas para a Argentina; Antonio Caggiano, cardeal argentino, que fez companhia ao bispo Barrére no Vaticano; Edoardo Dömöter, padre húngaro, que ajudou nazistas na fuga para a Argentina, obtendo passaportes falsos da Cruz Vermelha, inclusive para o criminoso SS Adolf Eichman; Krunoslav Draganovic, contrabandista de nazistas do Vaticano, também ligado à inteligência americana; Alois Hudal, bispo austríaco, organizador da fuga de vários criminosos nazistas, inclusive do comandante de Treblinka, Fanz Stangl; Ferenc Luttor, padre que serviu na embaixada húngara no Vaticano, mais tarde tornando-se um dos fundadores da SARE, organização argentina de resgate de nazistas; Carlo Petranovic, sacerdote croata, responsável pelo embarque de nazistas para a Argentina; e Eugène Tisserant, cardeal francês do Vaticano, colaborador ativo no apoio ao cardeal argentino Caggiano. O objetivo era, usando as palavras de um diplomata alemão, “transplantar a ideologia nazista para o solo sul-americano e, dessa forma, prejudicar os esforços de guerra dos Aliados”.

O notável escritor Jorge Luis Borges, em 1941, na revista Sur, já denunciava sem meias palavras: “Eles aplaudiram a invasão da Noruega e da Grécia, das repúblicas soviética e da Holanda: não sei que grande festa estão preparando para o dia em que nossas cidades e nossa costa forem incendiadas. É criancice impacientar-se: a misericórdia de Hitler é ecumênica; em breve teremos à nossa disposição todos os benefícios da tortura, da sodomia, do estupro e das execuções em massa.”

Muita documentação sobreviveu, embora a maior parte dela tenha sido destruída em 1955, nos estertores da ditadura Perón, destruição idêntica também acontecendo em 1996, quando ordens de queima de dossiês confidenciais de imigração de criminosos nazistas foram cumpridas por faxineiros argentinos. Segundo Uki Gõni, graças à Lei de Liberdade de Informação, centenas de documentos foram enviados para ele da Suiça, outro tanto de Londres e dos Estados Unidos, quando finalmente foi comprovada a cumplicidade papal direta na proteção de criminosos de guerra. E o autor ainda afirma que foi mais fácil consultar documentos nos Estados Unidos e na Europa do que no seu próprio país, mesmo agora quando velhos generais-ditadores esfregam suas bundas nos tribunais que os estão julgando sem consideração a seus níveis etários.

O livro merece ser lido e relido por dois motivos: o de melhor perceber os amplos relacionamentos ultra-reacionários entre ditadura argentina, III Reich e burocracia vaticana, o primeiro interesse; o segundo, para também se divertir com as “babaquices” das elites reacionárias católicas portenhas, em desejar sonhar com “a possibilidade de uma paz mundial assinada em Buenos Aires em futuro próximo”, “restaurando um mundo onde as odiosas consequências da Revolução Francesa fossem apagadas das páginas da história.”

Em 2002, quando o livro estava sendo lançado em língua inglesa, a Argentina vivenciava uma crise econômica nunca vista, provocada pelo desvio para o exterior de dezenas de bilhões de dólares, desonestamente enviados por uma classe política incorrigivelmente corrupta, num país onde ninguém jamais fora condenado por corrupção pelos seus juízes venais. Segundo Uki Gõni, na Argentina “nenhum silêncio é tão ensurdecedor quanto o que cerca Perón, a Igreja Católica e os nazistas que eles ajudaram a escapar da justiça”.

Creio que, de agora por diante, as pesquisas se tornarão mais fáceis para o autor de A Verdadeira Odessa. Afinal de contas, o papa atual é argentino e deverá ter pleno acesso à documentação existente nos subsolos portenhos e vaticanos. Lá e lô, como num jogo de dominó.

(Publicada em 08.04.2013, no Jornal da Besta Fubana, Recife, Pernambuco)
Fernando Antônio Gonçalves