A SERVIÇO DA IGREJA


O papa Francisco parece ter lido as reflexões do teólogo Hans Küng A Igreja Tem Salvação? Küng foi nomeado perito por João XXIII para o Vaticano II, em 1979 sentindo as peias da Inquisição, tendo sido revogada a autorização da Igreja para lecionar.

Definindo-se como um padre que valoriza a tradição, embora não seja tradicionalista, sendo apreciador do novo, ainda que nunca movido a novidades, Hans Küng em seu livro faz um alerta: não é mais possível calar de maneira responsável diante de uma Igreja que atravessa uma crise de direção, por tentativas de restauração nas últimas três décadas, de nocivos efeitos para o ecumenismo cristão. E enumera alguns sinais preocupantes: abusos sexuais numerosos, durante décadas encobertos por Roma; proferições dos papas e viagens com pompas e encenações; campanhas midiáticas que já não escondem o estado de crise permanente; centenas de milhares de casos de abandono da Igreja, na Alemanha; distanciamento do povo em relação à Igreja como instituição; não percepção dos bispos sobre a responsabilidade colegiada para com a instituição; hesitação dos teólogos e pesquisadores diante do “KirchenVolksBewegung” (Movimento Popular da Igreja, de caráter mundial e reformador); apoio insuficiente de teólogos evangélicos, por considerarem o assunto intrisecamente católico.

Segundo Küng, o papado não deve ser dissolvido, mas sim o sistema medieval romano, onde os escândalos de abuso sexual e falcatruas financeiras são os mais recentes sintomas. Ele não se arvora em juiz, mas em uma espécie de terapeuta, emitindo um diagnóstico sério, que recomenda remédios amargos, indispensáveis para um convalescer que volte a cativar a mensagem do Homão da Galileia.

No seu livro, Küng ressalta que “todo e qualquer diagnóstico sério de uma doença deve levar em conta não apenas seus sintomas, mas também buscar suas causas. Por isso, no levantamento de dados é preciso incluir o máximo possível de intercorrências”. Embora, denuncie: “uma anamnese da história da Igreja, uma leitura abrangente de seu histórico de vida e de doença, é algo, no seio da própria Igreja, terminante proibido”.

Vale a pena uma leitura criteriosa das medidas de salvação apontadas por Hans Küng, certamente já lidas e analisadas pelo papa Francisco, um papa que pega o avião carregando sua maleta, que entra no meio da multidão, e que perguntou antes da sua chegada ao Rio de Janeiro: por acaso a gente visita alguém de quem gosta, um amigo, dentro de uma caixa de vidro? Um papa que dá vontade de ouvir o que ele diz. E que assegura ser sempre possível botar mais água no feijão. E proclama que a Igreja precisa sempre ser reformada, pois coisas que serviam em outras épocas, agora já não servem mais. E que o jovem e o velho estão no mesmo barco. E que a única saída é sair de si mesmo. Um papa que tem a cara da gente. Um papa gente como a gente.

(Publicado no Jornal do Commercio, Recife, Pernambuco, 28.12.2013
Fernando Antônio Gonçalves