A SAGA DE RUBENS PAIVA


Há quarenta anos, num janeiro de 1971, “a casa do ex-deputado e pai de cinco filhos Rubens Paiva é invadida por agentes do serviço secreto do governo militar. Ele é levado para prestar depoimento e não volta mais”. E os dois últimos parágrafos de um livro bem escrito apontam para a esperança familiar de encontrar os restos mortais de Rubens Paiva, uma aspiração que jamais fenecerá: “Nunca é tarde para essa missão. As ossadas dos Romanov, a família real russa fuzilada pelos bolcheviques em 1918, só foram encontradas mais de sessenta anos depois, numa cova clandestina no meio de uma erma floresta. Mas tudo isso só poderá acontecer como decisão de Estado, quando o Brasil for uma nação com maturidade política e coragem suficientes para, finalmente, se olhar no espelho e encarar seus fantasmas, erros e medos”.

Em plena manhã depois de uma noite insone, olhos avermelhados e alma enojada com o relato de um assassinato que enlameou a História Republicana do Brasil, percorri os dois últimos parágrafos acima citados do livro Segredo de Estado – O Desaparecimento de Rubens Paiva, de José Tércio, jornalista e autor de vários textos premiados, que trabalhou anos na BBC de Londres, atualmente exercendo, no Brasil, as funções de tradutor. Um livro que deve ser lido e relido e recomendado nos quatro cantos do país, num momento histórico em que uma ex-torturada exerce as nobilísimas funções de Presidenta da República. Ela que também foi vítima de maltratos e humilhações praticados por brutamontes que obedeciam cegamente ordens de outros animais de níveis superiores, deve, como presidente, mãe e mulher cidadã, fortalecer a luta e os anseios pela implementação da Comissão da Verdade. Sem a qual continuaremos a nos revelar ao mundo inteiro como uma nação de pusilânimes que escamoteiam os fatos acontecidos nos porões de uma ditadura militar, pactuada também por inúmeros civis passíveis de desnudamentos. E que também de há muito tempo aponta grupelhos especializados em meter as mãos no Erário Público, sob os mais variados pretextos e disfarces.

O livro foi construído após meticulosas pesquisas e escrito numa linguagem sem hipocrisias nem arroubos fantasiosos, onde uma dramática experiência de dor familiar descreve as tensas relações entre Estado e a sociedade brasileira, revelando dados históricos de um dos períodos mais cruéis da nossa vida republicana, sempre combatida pelos que postulavam liberdade e justiça para toda gente brasileira.

Dias passados, assisti um xexelento metido a crítico asneirar contra a Comissão da Verdade, num periódico mundiça comedor de tocos. Sem ter nem prá quê, tenta reduzir a sub-nitrato de pó de arroto a Comissão da Verdade, um esforço efetivado que explicita os nossos avanços democráticos, sem apresentar qualquer consistente contra-argumento, por mínimo que fosse. Imaginando-se todo bolsonariado, encheu de bosteiras (besteira fétida) duas colunas e meia do periódico, com uma baboseira que buscava deslustrar os anseios por concretos esclarecimentos dos fatos históricos acontecidos. Desconhecendo os talentos múltiplos da criticidade brasileira, o miolo-de-fossa, muito enxerimento e pouca densidade, apenas conseguiu ampliar a sua falta de respeito para com os reais valores da pátria.

Numa conferência recente, alguém escreveu num flanelógrafo: “quando quiser saber alguma coisa sobre jóias, não pergunte ao alfaiate, pergunte ao joalheiro”. Eis o caminho mais realista, menos prejudicial e mais consistente para a Comissão da Verdade: o consultado deve ser bom, mais que muito bom, ótimo, inspirador de confiança, conhecedor pleno da versão dos fatos acontecidos.

No mais, é oportuno lembrar Fernando Pessoa, no seu Ultimatum lucidamente colérico, que serve bem para vergastar os escanteadores da Comissão da Verdade: “Passai frouxos que tendes a necessidade de serdes os istas de todos os ismos; passai, radicais do Pouco, incultos do Avanço, que tendes a ignorância por coluna da audácia; passai, gigantes de formigueiro, ébrios da vossa personalidade de filhos de burguês, com a mania da grande-vida roubada na despensa paterna e a hereditariedade indesentranhada dos nervos; passai, bolor do Novo, mercadorias em mau estado desde o cérebro de origem; passai, decigramas da Ambição; passai, cerebrais de arrabalde; passai, senhores feudais do Castelo de Papelão; passai, cabeças ocas que fazem barulho porque vão bater com elas nas paredes; passai, absolutamente passai, porque o que aí está não pode durar, porque não é nada!!”.

Que se estabeleça a Comissão da Verdade, para historicamente identificar os fingidos democratas dos tempos de agora!

(Publicada em 02.06.2011, no Portal da Globo Nordeste, blog BATE & REBATE)
Fernando Antônio Gonçalves