A IGREJA E OS HOMOSSEXUAIS


 A IGREJA E OS HOMOSSEXUAIS. ENTREVISTA COM LUÍS CORRÊA LIMA
Luís Corrêa Lima é doutor em História e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro -PUC-Rio. É nesta instituição que pesquisa questões como a diversidade sexual. “A universidade católica é, antes de tudo, ‘universidade’, ou seja, um universo onde diversos saberes podem se encontrar, um espaço aberto à totalidade. No ambiente acadêmico é natural a pluralidade ideológica, que permite pensar a complexidade da realidade e a sua conflitividade”, contou ele, na entrevista que concedeu à IHU On-Line, por e-mail. Corrêa Lima tratou de temas como a relação da Igreja com questões como homossexualidade, experiência humana, novos modelos de família e uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. “Desde o final do século passado, há um número considerável de divorciados recasados formando um novo modelo de família. Em uma região da Alemanha, os bispos escreveram uma carta pastoral sobre este assunto, mostrando abertura. Hoje aumentam as famílias homoparentais, que têm como responsável um casal gay”, relatou.
Formado em Administração, Filosofia e Teologia, Luís Corrêa Lima também é mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio, onde é professor desde 2004, e doutor em História pela Universidade de Brasília – UnB. É autor de Teologia de Mercado – uma visão da economia mundial no tempo em que os economistas eram teólogos (Bauru: EDUSC, 2001).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor trabalha a questão da homossexualidade e religião em suas pesquisas. Como é tratar desses assuntos sendo professor e pesquisador de uma universidade católica?
Luís Corrêa Lima – A questão da homossexualidade é multidisciplinar, conectando-se com vários âmbitos, incluindo o religioso. A religião traz consigo uma visão de mundo e tem importante incidência na sociedade. Ela pode ser fonte de homofobia e de hostilidade à diversidade sexual, e também pode ser benéfica, ajudando as pessoas a amarem a si mesmas como criação divina e a darem um sentido amoroso e transcendente às suas vidas.
A universidade católica é, antes de tudo, “universidade”, ou seja, um universo onde diversos saberes podem se encontrar, um espaço aberto à totalidade. No ambiente acadêmico é natural a pluralidade ideológica, que permite pensar a complexidade da realidade e a sua conflitividade. A universidade católica não é um setor de uma paróquia, onde pessoas piedosas estudam autores edificantes. A pluralidade ideológica é constitutiva da vida acadêmica, e é também a sua riqueza. Aliás, “católica” significa universal, o que remete à mesma totalidade e abertura. O que mais se opõe à catolicidade é o espírito de seita, isto é, a crença que indevidamente exclui, tornando-se bitolada e arrogante.
A homossexualidade é um assunto delicado, na sociedade e em diversas instituições. Não é raro encontrar resistências ou temores. Mas com firmeza e delicadeza, este assunto pode ser pautado. Na universidade, mesmo católica, a dimensão acadêmica dá respaldo à pesquisa, bem como a publicações, teses, grupos de estudo, cursos e eventos.
IHU On-Line – A Igreja de hoje consegue trabalhar a partir do caráter histórico e cultural próprio da experiência humana?

Luís Corrêa Lima – Na Igreja há uma multidão de povos e culturas. Na sua história bimilenar, há uma grande riqueza em processos de adaptação, inculturação da fé e fomento de transformações. O risco de se afastar do caráter histórico e cultural da experiência humana, existe de fato ao se adotar uma concepção de lei natural entendida como um código detalhado, universal e imutável, reconhecido e ratificado pela autoridade eclesiástica. Aí, sim, há risco de engessamento.

Outra maneira de se conceber a lei natural é como uma racionalidade presente na natureza, obra do Criador. Racionalidade esta que é compreensível pela reta razão em diferentes culturas e contextos. O entendimento desta lei e da responsabilidade humana, afirmou certa vez o papa Bento XVI, requer um “diálogo fecundo entre crentes e não-crentes; entre filósofos, juristas e homens de ciência”. Desta maneira, prossegue ele, pode-se oferecer também aos legisladores um material precioso para a vida pessoal e social. Neste caso, no entanto, não se trata de questões fechadas e de conclusões definitivas. O próprio crente, incluindo o papa, é um interlocutor do diálogo. E para que este diálogo seja fecundo, é preciso ouvir com atenção vozes diversas. A tarefa não é fácil e nem sempre o magistério consegue.
IHU On-Line – Como o senhor vê os novos modelos de “família” de hoje e como essas famílias se relacionam com a religião?
Luís Corrêa Lima – A família e o casamento mudaram bastante ao longo da história. Nos tempos bíblicos, a mulher era propriedade do marido ou do pai, assim como a casa, o escravo e o jumento. O casamento era um acordo entre famílias, prescindindo do consentimento dos cônjuges. A função da esposa era gerar descendentes para a família do marido. Caso ficasse viúva e sem filhos, ela teria que se casar com o cunhado para cumprir esta função. No século XII, a tradição ocidental introduziu o consentimento dos cônjuges como condição necessária e suficiente para a validade do casamento. No século XX, o modelo patriarcal de família declinou em todo o mundo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, estabeleceu o livre consentimento e direitos iguais entre marido e mulher. A Igreja Católica, no Concílio Vaticano II, louva as nações que promovem a igualdade do homem e da mulher na sociedade. A mudança é enorme e o processo continua.
Desde o final do século passado, há um número considerável de divorciados recasados formando um novo modelo de família. Em uma região da Alemanha, os bispos escreveram uma carta pastoral sobre este assunto mostrando abertura. Hoje aumentam as famílias homoparentais, que têm como responsável um casal gay. Os bispos norte-americanos se depararam com esta questão. Eles são contra a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. No entanto, aprovaram o batismo de crianças sob a responsabilidade destes casais, desde que haja o propósito de educar as crianças no catolicismo. E muitas escolas católicas nos Estados Unidos recebem estas crianças. Em vários lugares, elas convivem com outras crianças sem problemas ou reclamações dos pais. As mudanças na sociedade contribuem para a boa aceitação e convivência. As mudanças na Igreja, por sua vez, dependem em grande parte do contexto social das comunidades locais e de sua abertura pastoral.
IHU On-Line – Por que grande parte dos católicos não encoraja as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, quando temos exemplos tão claros de que essas relações são mais leais dos que as relações heterossexuais?
Luís Corrêa Lima – Comecemos pelo inverso, que é menos conhecido. No ano passado, o novo presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha, Robert Zollitsch, declarou-se a favor da união civil homoafetiva. Ele considera uma questão da própria realidade social: se há pessoas com orientação homossexual, o Estado deve adotar uma legislação correspondente. E efetivamente a Alemanha reconhece esta união desde 2002. Convém notar que um presidente de uma conferência nacional de bispos não faria uma declaração destas sem o respaldo dos outros bispos do país, e sem um amplo consenso da igreja local. E isto se dá na terra do papa.
Já na Itália, um importante grupo de jesuíta apóia as uniões gays. Em junho de 2008, a prestigiosa revista da Companhia de Jesus, Aggiornamenti Sociali, publicou o estudo de um núcleo católico de bioética com sede em Milão. Este núcleo defende que a convivência entre duas pessoas do mesmo sexo é benéfica para a vida social. E em uma relação duradoura, devem-se reconhecer direitos e deveres a quem oferece cuidado e sustento ao companheiro, independentemente de que a intimidade entre eles seja sexual ou não. Ao político católico, acrescenta, é justificável votar a favor deste reconhecimento.
Na verdade, nós estamos vivendo uma mudança de paradigma antropológico. Havia uma heterossexualidade universal, ou heteronormatividade, uma suposição de que todo ser humano é feito para o sexo oposto, de que só com alguém de outro sexo se pode constituir uma união sadia, base de uma família respeitável. A homossexualidade foi considerada doença até o início dos anos 1990. Isto ainda está arraigado na sociedade e nas estruturas mentais, que incidem na religião. A Igreja tem dois mil anos, e o peso da tradição é muito forte.
O cardeal Carlo M. Martini, fazendo um balanço de sua vida, declarou: “Entre os meus conhecidos há casais homossexuais, homens muito estimados e sociáveis. Jamais me foi perguntado e nem me teria vindo em mente condená-los”. Demasiadas vezes, prossegue ele, a Igreja tem se mostrado insensível, principalmente com os jovens nesta condição. Certamente Martini foi formado em uma outra mentalidade bem diferente. Ele mudou ao encontrar estes casais, ao ver que eles não são uma ameaça para a sociedade. Isto é que pode fazer as pessoas mudarem, e verem que também as instituições devem mudar.

IHU On-Line – Como o senhor vê a fé de uma pessoa homossexual?

Luís Corrêa Lima – É uma fé que rompe barreiras. Conheço pessoas gays que estão profundamente convencidas de que Deus as fez assim, e não se envergonham do que são. A barreira a ser vencida é a heteronormatividade, a suposição de que só os héteros correspondem ao desígnio divino e que só eles podem ser aceitos socialmente. Muitas vezes a aversão aos homossexuais, a homofobia, não só está disseminada nos ambientes mas também internalizada nos próprios gays. Daí decorre uma baixa autoestima e uma enorme culpabilização, que não são raras e podem levar os gays à depressão e mesmo ao suicídio.
Quando a pessoa se aceita como ela é, Deus pode ser conhecido e amado como fonte do amor incondicional. E aí um novo caminho se abre. O jugo leve e o fardo suave oferecidos por Cristo podem ser carregados, e os que estão cansados e sobrecarregados podem ser aliviados. Quando a diversidade sexual é reconhecida não como um desvio, mas como um aspecto da realidade humana (e mesmo animal), pode-se ter uma outra compreensão da própria criação. As diversidades, que são tantas na criação sob as mais diferentes formas, apontam para a diversidade existente no próprio criador, no ser divino que não se vê. No Deus único há diferentes pessoas em comunhão: Pai, Filho e Espírito Santo profundamente unidos desde toda a eternidade. A diversidade na Santíssima Trindade se reflete na variedade da criação.

IHU On-Line – O vice-presidente da CNBB, Luís Soares Vieira, afirmou que homossexuais podem ser padres desde que sejam celibatários. Como o senhor vê essa questão?

Luís Corrêa Lima – A aptidão de pessoas homossexuais para o sacerdócio é corroborada pelo ex-superior geral dos dominicanos, Timothy Radcliffe. Ele trabalhou em todo mundo com bispos e padres, diocesanos e religiosos. Radcliffe não tem dúvidas de que Deus chama gays ao sacerdócio. E afirma que eles estão entre os sacerdotes mais dedicados e impressionantes que encontrou. Por isso presume que Deus continuará chamando ao sacerdócio tanto gays, quanto heterossexuais, porque necessita dos dons de ambos.

As reticências no acesso dos gays ao sacerdócio decorrem da homofobia presente na sociedade e na Igreja, que gera desconfiança. Um documento romano de 2005 determina o veto dos candidatos que apresentam “tendências homossexuais profundamente enraizadas”. Não se define o que sejam estas tendências, mas se afirma que elas são um grave obstáculo para um correto relacionamento com homens e mulheres. Convém lembrar que a última palavra sobre a ordenação cabe ao bispo local ou ao superior religioso, depois de ouvir os encarregados da formação.
Alguns bispos entendem que não se trate de quaisquer tendências homossexuais, mas apenas daquelas que sejam um grave obstáculo para o correto relacionamento de um padre celibatário com os fiéis. Outros afirmam que a vocação presbiteral contém o senso de uma paternidade humana e espiritual que um homossexual não possui. Por isso ele não deve ser admitido mesmo que viva uma castidade perfeita e uma conduta exemplar. Felizmente o vice-presidente da CNBB adota a primeira posição. Um novo documento romano, de 2008, retoma a questão suavizando a resistência: o candidato deve ser vetado se não “enfrentar de modo realista” suas tendências homossexuais. A postura intransigente perde terreno.
De qualquer maneira, a auto-estima do seminarista ou sacerdote homossexual é muito bombardeada em meio a esta polêmica. É preciso que haja um ambiente de confiança onde ele possa admitir a sua condição, ainda que apenas para si mesmo, para seu orientador espiritual e para seu superior. E que possa conversar, refletir e orar sobre isto. Caso contrário, a homossexualidade enrustida terá efeitos devastadores em si mesmo e nos outros. Faltam modelos explícitos de santidade homossexual, nos quais as pessoas possam se inspirar.
IHU On-Line – É possível entender a homossexualidade a partir de uma visão que não esteja vinculada ao desejo?
Luís Corrêa Lima – O conceito de homossexualidade é do século XIX. Na antiguidade, um indivíduo que tinha relações com pessoas do mesmo sexo não constituía uma categoria, não era classificado segundo esta prática. Isto se dá no Ocidente com a associação das relações entre pessoas do mesmo sexo e o pecado de Sodoma. O indivíduo que praticava este tipo de relação foi designado como “sodomita”. Esta classificação é intrinsecamente religiosa e moral, pois se trata do autor de um pecado gravíssimo e abominável que clama por punição divina. Já “homossexualidade” é um conceito moralmente neutro, pois desloca o homoerotismo do campo religioso condenatório para o campo médico, ainda que da patologia. O pecado abominável se torna antes de tudo uma doença. E assim permanece até o final do século XX.
Nesse meio tempo o movimento social homossexual adotou o termo “gay”, que já existe há alguns séculos, e significa alegre. É uma maneira positiva de se ver e de se enunciar. O amor entre pessoas do mesmo sexo também pode ser entendido como “homoafetividade”. Já se fala em direito homoafetivo, e muitos cartórios emitem um documento declaratório de convivência homoafetiva. A vantagem sobre o termo homossexualidade é que sexo frequentemente enfatiza a genitalidade, enquanto afetividade é bem mais ampla, incluindo o relacionamento com o outro e o seu bem.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos, 16.03.2010